Das finalidades do Inquérito Policial diante das novas demandas midiáticas
O artigo descreve a importância do Inquérito Policial, como instrumento de apuração das infrações penais, considerando suas reais finalidades, sob o manto dos princípios e garantias constitucionais. O confronto entre os anseios da sociedade, diante da criminalidade e da intensa e, por vezes, deturpada divulgação desta pelo mass media, e a defesa das investigações e do Inquérito Policial do invasivo populismo penal midiático.
Das finalidades do Inquérito Policial, como instrumento de apuração das infrações penais, sob o prisma dos princípios e garantias constitucionais em confronto com as demandas midiáticas.
1. INTRODUÇÃO
O inquérito policial, desde sua inserção oficial no ordenamento jurídico, sofreu poucas alterações quanto à sua formalidade e regulamentação. Com o advento da Constituição Federal de 1988 restaram no texto constitucional consagrados princípios e garantias fundamentais que visam concretizar o Estado Democrático de Direito. Somente sob o império da lei e dos princípios constitucionais fundamentais, inclusive com o respeito ao contraditório mitigado e ampla defesa, efetivamente esclarecido o campo de atuação, é que se poderá compreendê-lo como instrumento de promoção da Justiça social, de um lado atendendo aos anseios de repressão penal pela sociedade e, de outro giro, mantendo a integridade dos princípios e garantias constitucionais assegurados na Constituição Federal e que objetivam a dignidade da pessoa humana.
Diante da grave crise de segurança pública que nos assola, prepondera uma situação muito mais sensível, mais avassaladora e de consequências nefastas travada por duas vertentes. A primeira argumenta que toda e qualquer solução na área de segurança pública passa por uma investigação policial defensiva da dignidade da pessoa humana e deva submeter-se aos princípios constitucionais. Em verdade, se opõe a qualquer recrudescimento de direitos conquistados ao longo dos séculos.
A segunda tem suas crenças baseadas na extinção ou, pelo menos, na redução da dignidade da pessoa humana creditando aos princípios constitucionais as dificuldades de punição e o alastrar da insegurança e criminalidade.
Relembremos que na década de 90 iniciou-se por nossa legislação a adesão às políticas geradas por movimentos conservadores tais como Movimento de Lei e Ordem, o Direito Penal do Inimigo, a Tolerância Zero, em suas variadas facetas, que pregavam um endurecimento das relações de combate ao crime, cujo principal exemplo foi a edição da Lei dos Crimes Hediondos. Não que não haja real necessidade de respostas severas a crimes de especial monta. O que ocorre é que, os principais traços da economia, das políticas educacionais, de saneamento básico, ou da falta destas, bem como toda a complexitude do processo de globalização foram de plano, ignorados. Suas consequências que efetivamente reverberam em nossa sociedade foram simplificadas num patamar mínimo, tratadas como insignificantes e relevadas.
Para nossos governantes a precariedade de suas políticas públicas encontra um mascaramento útil e, por fim nossos legisladores arremataram o quadro com a feitura de legislações de toda ordem, objetivando respostas fáceis e pueris a problemas tão graves que nos assolam. A “logica” política tem por espeque reconquistar a credibilidade de todo o sistema de justiça criminal com apoio em leis entusiastas, insuficientes para os fins a que pretensiosamente deveriam se destinar. Há um cristalino mascaramento dos reais problemas. A par disso, no artigo a respeito sobre o Tolerância Zero, o ilustre professor Sérgio Salomão Shecaira assim se manifesta “A crença na rápida eliminação do crime e da criminalidade baseia-se em duas típicas ilusões: uma pode ser descrita como cosmética e a outra como simplificadora da realidade social”.[1]
Apontou-se o Direito Penal como o escolhido para numa canetada solucionar o caos social.
Não estaria, porém, completo o quadro ruinoso se este lado da guerra não voltasse seus olhos para o inquérito policial.
É o inquérito policial o alvo predileto desde tempos antigos. Os ataques são constantes, contudo, ele permanece com existência serena.
Francisco Campos, então Ministro da Justiça, já fervorosamente o defendia contra as obscuras intenções de grupos que pretendiam aniquilá-lo. Com maestria assim se manifestou: “uma garantia contra apressados e errôneos juízos formados ainda quando persiste a trepidação moral causada pelo crime ou antes que seja possível uma exata visão de conjunto dos fatos, nas suas circunstâncias objetivas e subjetivas. Por mais perspicaz e circunspecta, a autoridade que dirige a investigação inicial, quando ainda perdura o alarma provocado pelo crime, está sujeita a equívocos e falsos juízos a priori ou sugestões tendenciosas. Não raro, é preciso voltar atrás, refazer tudo, para que a investigação se oriente no rumo certo, até então despercebido”. [2]
Imperioso reconhecer que, ainda na atualidade, parte majoritária da doutrina processual penal nega aplicação dos princípios constitucionais ao Inquérito Policial, defendendo o cabimento destes tão somente quando da fase processual penal. Muitos, ainda, vão além, não reconhecendo sequer a natureza do inquérito policial, desdenhando-lhe sua importância.
A situação estrábica da doutrina processual implica nas constantes “lições” de que as garantias constitucionais são asseguradas somente na fase processual. Delimitam, assim, a fria letra da lei que disciplina “(…) e aos acusados em geral”, consoante preceitua o art. 5º, inc. LV, da Constituição Federal.
Desde seu nascedouro, o inquérito existe justamente pelo respeito à dignidade da pessoa humana.
Resta cristalina a defesa do inquérito policial e sua democratização como meio único na realização da justiça criminal e defesa dos direitos fundamentais conquistados pelo homem, até mesmo porque entendemos que a atividade estatal mais severa proporcionada por um Estado Democrático é a realizada pela persecução penal importando na restrição de liberdade ou em outras esferas de direitos individuais do cidadão.
Como consectário natural insta observar que o aperfeiçoamento se impõe mas, não podemos aceitar seja o inquérito policial eleito bode expiatório de uma legislação que requer maior conscientização, para uma sociedade que exige melhorias sociais.
Traçamos aqui as nuances do Inquérito Policial atinentes às suas finalidades, concebendo-o como instrumento de promoção do Estado Democrático de Direito.
2. CONCEITO DE INQUÉRITO POLICIAL
“O inquérito policial consiste em todas as diligências necessárias para o descobrimento do fato criminoso, de suas circunstâncias e dos seus autores e cumplices” assim disciplinava o art. 42, do Decreto nº 4.824, de 22 de novembro de 1871.
Ao lado do tema referente à natureza jurídica do inquérito policial o conceito deste, forma questão de grandes divergências na doutrina. É pacífico em nossa doutrina que a maioria considera para a sua conceituação a finalidade do inquérito policial, fugindo, assim, de sua conceituação primeira, datada de sua criação oficial em 1871 e vinculando-o a uma finalidade única de servir de base de dados ao órgão acusatório.
Nessa esteira, diversos são os doutrinadores que tecem sua conceituação com espeque único na finalidade de fornecer elementos para a acusação, outros, por sua vez, emprestam-lhe tamanho desinteresse doutrinário que fincam seu conceito em “mera peça informativa”.
O estrabismo que comanda a matéria é institucional, em que se pese a indiscutível autoridade de nossos conceituados doutrinadores, basta compilar livros de processo penal que encontramos, em sua maioria, estampado o pretenso conceito calcado no jargão “mera peça informativa” e, adiante, muitos enfatizam a sua serventia ao acusador.
A doutrina aponta outros conceitos menos tendenciosos. Senão vejamos, o mestre Dilermano Queiróz Filho que assim reputa o inquérito policial “instrumento pelo qual o Delegado de Polícia materializa a investigação criminal, compila informações a respeito da infração penal, de suas circunstâncias e resguarda provas futuras que serão utilizadas em juízo contra o autor do delito”.[3]
Nesta conceituação constatamos a ênfase do autor em estabelecer a finalidade única de inquérito em colher provas a fim de utilizá-las futuramente contra o autor do delito. Esta não é função do inquérito policial. Muitas vezes a colheita de provas redunda em apontar em outra direção, ora informando que o suposto autor não cometeu o delito, ora apresentando a correta autoria delitiva. E mais, muitos os casos em que não há se falar em ação penal.
Para Câmara Leal o inquérito policial, no processo penal, possui duas acepções:
Em sentido material é o conjunto de atos, ordenados e disciplinados por lei, que constituem em cada caso criminal a sequência da atividade policial nas diligências que lhe competem. Em sentido formal, inquérito policial é a peça processual que mantém e autentica, em forma legal, os atos e diligências policiais, relativos a determinado caso criminal.[4]
De outro giro, alguns doutrinadores, buscam baseados numa sistemática técnica um modo mais preciso para conceituá-lo. Dentre eles, destacamos Augusto Mondim cujo conceito lançado em 1954, em seu Manual do Inquérito Policial, traduz com clareza solar o significado do inquérito policial.
O mestre da então chamada Escola de Polícia, do Estado de São Paulo, Augusto Mondin, assim define inquérito policial:
O registro legal, formal e cronologicamente escrito, elaborado por autoridade legitimamente constituída, mediante o qual esta autentica a suas investigações e diligências na apuração das infrações penais, das suas circunstâncias e dos seus autores.[5]
E concluímos com a colação do conceito de André Rovegno:
(...) é o expediente escrito, produzido pelo órgão de polícia judiciária competente onde são reunidas e documentadas todas as diligências levadas a efeito (e todos os resultados encontrados nessas diligências) durante a tarefa de esclarecer as circunstâncias de um fato que se apresentou inicialmente com aparência de ilícito penal passível de sancionamento, confirmando ou infirmando essa aparência inicial e, esclarecendo, se possível, na hipótese confirmatória, a autoria da conduta.[6]
3. FINALIDADE DO INQUÉRITO POLICIAL
Na lição de Joaquim Canuto Mendes de Almeida, em sua doutrina dos Princípios Fundamentais do Processo Penal reportando-se ao jus puniendi:
Não surge disso (suposta prática de crime) uma pretensão do Estado à pena, mas uma pretensão do Estado à justiça penal, que tanto pode estar na condenação do criminoso, se realmente o tiver sido, como na declaração da legitimidade de seu ato, se não tiver sido criminoso. O poder público não litiga com o indiciado.”[7]
Com maestria, lecionando sobre o poder punitivo do Estado, o mestre revela os parâmetros da condução de uma investigação criminal.
É o império da lei e a aplicação do princípio da verdade real que cotejados devam nortear o inquérito policial.
Daí o importante papel do inquérito policial. Conduzida por uma autoridade policial, a investigação policial não se confunde com a ação penal e tampouco com as ações ou funções constitucionais do Ministério Público. O certo é que, por vezes, o inquérito policial e toda sua dinâmica configurada na investigação criminal acabam por concluir que não houve o crime, ou se fato houve que não possui natureza ilícita ou que presentes as excludentes da ilicitude, ou que mesmo presente o ilícito não há autoria certa e, assim, a primeira fase da persecutio criminis está materializada no inquérito policial.
O inquérito policial não se limita com a produção de provas vinculadas ou direcionadas à imputação de delito ao autor. Nosso posicionamento não está em consonância com a doutrina esposada que informa que o inquérito policial tem como finalidade precípua perseguir a punição do autor. Filiamo-nos a corrente doutrinária que defende que o inquérito policial tem aspecto muito mais amplo pautado no fato de que o Delegado de Polícia, na presidência do inquérito, busca a tipicidade do fato, a existência ou não de causas excludentes de antijuridicidade e a culpabilidade do autor do delito. É o Ministério Público o órgão que assume a responsabilidade pela persecução penal, é ele o encarregado da acusação e que busca a condenação. Esta não é a missão precípua do inquérito policial.
Sua nobreza está na liberdade de buscar a verdade real, seja ela para imputar o crime ao investigado ou para inocentá-lo.
Entregá-lo ao Ministério Público configura outro desejo de alguns segmentos da sociedade. Ora, o Ministério Público é o titular da ação penal e o encarregado de promover o início da persecução penal em juízo. Logo, é parcial, é parte.
A investigação policial tem de ser impessoal, livre, para perseguir seu fim, a verdade real. Portanto, essa ideia é extrema preocupante e, até mesmo pueril. Ademais, nos países onde o Ministério Público dirige o inquérito o órgão é nacional e submisso ao Ministério da Justiça, e este não é nosso exemplo, haja vista que, no Brasil o órgão é, tecnicamente, estadual. Assim, como representante do Estado não pode ao mesmo tempo assumir a pretensão de investigar ou dirigir a investigação e permanecer no polo ativo como acusador.
O advento da Constituição Federal de 1988 e sua gama de inovações vieram respaldar a importância do inquérito quando, no art. 144, IV, prevê a inserção das Polícias Civis como órgãos de Segurança Pública, com atribuição de polícia judiciária e estruturação em carreira. E, por principal institucionaliza o inquérito policial consagrando-o em seu art. 129, VIII, como “definitivo instrumento formal da polícia judiciária”.
Os interesses na apuração das infrações penais e seus autores são latentes e cristalinos os desejos mais obscuros na ideia de deter o poder de presidir o inquérito policial. Na revista ADPESP assim se manifestou o colega Tarcísio Marques, em seu artigo Inquérito Policial:
Tal como um vulcão dormente, mais ainda vivo, que de quando e sem prévio aviso apresenta sinais e manifestações de nova erupção. Assim acontece com o tema em pauta, ou seja, o desejo de alguns setores de suprimir o inquérito policial o simplesmente retirá-lo das mãos da Polícia Civil (...)
Ainda, tal como o vulcão que não diz o por quê de sua “braveza” e simplesmente quer jogar sua lava fervente contra todos, alguns segmentos da sociedade, assim, também procedendo, seja através de proposta de Emenda Constitucional ou mesmo através de apresentação dos mais variados projetos de lei, visando a reforma do Código de Processo Penal, dão ênfase ao tema Inquérito Policial, desejando sua extinção ou ao menos sua retirada da atribuição da Polícia Civil, como soi acontecer desde o ano de 1841.[8]
A base de dados consubstanciada no inquérito policial não está a serviço da acusação. E toda a investigação voltada a produzir as provas que serão inseridas no inquérito tem por escopo único concretizar a Justiça. Nesse compasso fácil a conclusão de que a condução do inquérito policial e todos os poderes daí inerentes cabe, exclusivamente, ao Delegado de Polícia, como decorrente do mandamento constitucional estipulado no art. 144, da Constituição Federal.
Repisamos que a finalidade do inquérito policial não é servir à acusação, municiando-a, pensamento adotado com comodismo pela maior parte da doutrina. Sua finalidade está calcada na reconstrução da verdade, cujas bases pautam-se na isenção e razoabilidade, necessárias para uma conclusão segura a respeito do delito e sua autoria.
O Prof. Luís Flávio Gomes, em artigo escrito com base em ideias desenvolvidas junto a Academia de Polícia Civil do Estado de São Paulo e a Academia Nacional de Polícia/Polícia Federal, assim se manifestou:
De que valeriam os princípios da igualdade, contraditório e ampla defesa se a acusação já comparecesse hipertrofiada na fase judicial?
Iluminada, aberta ao público com regras absolutamente claras e justas, mas os lutadores, que finalmente sobem ao ringue são, de um lado um peso-pesado, e de outro, um peso pena. (...)
Neste passo, fica claro mais uma vez, e agora em função do princípio da isonomia, o descompromisso da autoridade policial com os interesses do futuro órgão da acusação ou dos investigados. O delegado de polícia, como autoridade do Poder Executivo que atua na persecução criminal, tem a missão constitucional de investigar a verdade sobre fatos e sua autoria, de forma neutra, desvinculado de paixões que inevitavelmente contagiam aqueles que, em juízo, disputarão teses com a aparte contrária.
O princípio da isonomia só estará sendo respeitado no processo criminal se tiver sido observado também na investigação preliminar (...), sob pena de termos apenas a igualdade formal no processo criminal, o que não atende a vontade da Carta Magna de 1988.[9]
A investigação criminal, em que pese muitas vezes esquecida ou renegada como parte integrante do Direito Processual Penal e, como decorrência lógica receber pouca atenção e, sob o foco de muitos posicionamentos um olhar distorcido, possui em verdade um papel importantíssimo no desenrolar da instrução processual. É a presença do inquérito policial nos autos do processo que direciona, informa o valor e dá o tom ao espírito do julgador.
“A verdade é, assim, a meta do inquérito policial, pouco importando que essa verdade se construa em favor da acusação ou da defesa. Marco Antonio Desgualdo, no prefácio do Manual de Polícia Judiciária, já havia afirmado que se pretende que o inquérito policial “sirva tanto para evidenciar a culpabilidade do averiguado, quanto para eximi-lo de uma acusação injusta”.[10]
É a existência do quadro comprobatório produzido no inquérito policial que irá determinar se cabível ou não a fase processual. Daí a investigação criminal não é um fim em si mesma. E nós não podermos aceitar a falácia do menosprezo ao inquérito policial.
Não se trata aqui de analisar o inquérito policial sob a ótica do delegado de polícia ou da própria Polícia, ou padronizá-lo ou adequá-lo às normas e princípios constitucionais. Buscamos tão somente expor suas reais dimensões catalogando sua natureza jurídica com espeque no valor probatório que possui e suas consequências na busca da verdade real, submetendo-o aos princípios constitucionais na busca da promoção da Justiça social.
4. O POPULISMO PENAL MIDIÁTICO E SUA INFLUÊNCIA NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL
O vocábulo democracia é dotado de forte intensidade, mas não é somente disposição de espírito que pode conduzir um país ao estado democrático. A Constituição Federal de 1988 traz em seu bojo conteúdo democrático. É um fato. Mas não podemos nos fazer democráticos, renascermos sob este título de um momento para outro. Nas lições do mestre Ferreira Filho, referindo-se a promulgação da Constituição de 1988: “O mundo hoje é unanimemente democrático. Todos os governos e todos os povos pretendem ser democráticos. Todos se declaram pela democracia e, não raro, se entredevoram pela democracia”.[11]
A promoção da justiça criminal, circunscrita ao trabalho desenvolvido pela Polícia Civil, especificamente, focado no inquérito policial como meio de apuração das infrações penais, consiste em conciliar os direitos e garantias constitucionais da pessoa investigada, respeitando os princípios adotados na Carta Magna com o direito da população de viver em uma sociedade com segurança pública.
E, tendo este como ponto máxime de nosso estudo, consideramos que o inquérito policial possui um aspecto muito mais abrangente do que os clássicos o pretendem e deveras intenso quando retiramos o véu que lhe é atirado pelos reticentes, a fim de encobrir-lhe sua real finalidade, vale dizer, o inquérito não se restringe a satisfação do jus puniendi, nem a servir ao órgão acusatório, seu valor é muito mais nobre.
As âncoras que nos atrelam ao posicionamento clássico que nega aplicação dos princípios do contraditório e ampla defesa ao inquérito são as mesmas que nos proporcionam o afogamento nas profundezas da descrença, do menosprezo ao inquérito e a Polícia Civil, afinal, este é o principal trabalho, a apuração das infrações penais.
De outro giro, na raiz, não podemos esquecer a liturgia do populismo penal. Estamos na era da Justiça televisiva, de teleaudiências, tele julgamentos, de acompanhamentos online de investigações policiais, inúmeras as tentativas da impressa em se imiscuir nas investigações policiais.
A Justiça populista arroga-se num conhecimento que não dispõe e apresenta como num passe de mágica, entabulada por discursos moralistas, quase bíblicos, a solução para as dores que assolam a população. A retórica rasa, desprovida de razão, é sempre a mesma consubstanciada em jargões “o sistema penal brasileiro é frouxo”, “a segurança pública está falida”, “as leis são brandas”, “precisamos da pena de morte”, reclama-se, ainda, pela diminuição da idade penal, por penas mais duras, pela maior criminalização seja lá de que ato for ainda que à mercê de não preencher os mínimos e clássicos requisitos para se entabular um fato como crime, enfim redundam em estereótipos sensacionalistas, pautados numa visão messiânica do assunto.
E neste diapasão, numa briga diabólica pela audiência é, a onda de crimes, a menina dos olhos da imprensa. E neste mesmo patamar encontram-se “soluções”, parecidas com revelações milagrosas, deparamo-nos com a nova figura de Moisés que, com seu cajado, abre o Mar Vermelho. Aqui, para nossos “salvadores” bastam microfones, sejam em palanques políticos, nas tribunas das Câmaras ou Senado Federal ou nos auditórios.
Não sabemos se se trata da opinião pública ou da opinião publicada.
Neste panorama, Luis Flávio Gomes citando Wisehart revelou “(...) aqui há o que os lógicos chamam de reciprocidade de causa e efeito, a imprensa faz a “opinião pública” e a “opinião pública” faz a imprensa. Como em outros aspectos de nossa vida social, somos confrontados por um círculo vicioso”. No entanto, este círculo de retroalimentação deve ser rompido, como advertia.” [12]
E é neste passo que a opinião pública constrói seu juízo sobre políticas de segurança pública e criminal e são estes juízos que, por sua vez, conferem apoio às políticas do Executivo e a gama inusitada de novel legislações que pairam no ar. Um mingau de “políticas sociais e criminais” e demandas midiáticas se faz presente. Difícil de deglutir.
Para o ilustre prof. Paulo Sumariva “A ciência da criminologia possui um papel decisivo para o ensino do direito, auxiliando na compreensão do poder e do controle social e penal, estudando o crime, a criminalidade, a pena, a vitimização, a impunidade e a cifra negra. O saber criminológico é a formação de uma consciência jurídica crítica e responsável, capaz de tirar o jurista de sua zona de conforto, adormecido no seu ponto de partida, que é a norma válida, e traçar novas diretrizes, visando o enfrentamento da violência individual, institucional e estrutural.”[13]
Há quase 250 anos em sua obra Dei Delitti e Delle Pene, Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria, asseverava que a sensação de impunidade que é passada para a sociedade decorre do tempo que é demandado desde o momento em que o crime é cometido até a aplicação da pena, considerando-se que o intervalo é muito grande. Relata que a sociedade deve ser acostumada a pensar que o castigo é uma consequência do crime.
Mas isto não importa! Primam por medidas salvadoras. Já dizia um poeta “pobre do povo que precisa de heróis”.
Mas, em nenhuma outra seara a epopeia do populismo se faz tão intensa e presente quanto nas investigações. É ali o palco para os mais intensos delírios midiáticos, o povo tal qual na Copa do Mundo que se traveste de técnico, aqui se irroga nas funções do Delegado de Polícia.
Deleitam-se os rapazes das 18:00 horas em seus noticiários, passo a passo tentando acompanhar e inovar com dados inéditos nas investigações. O povo vai ao delírio!
Peço vênia para citar “que a liturgia do populismo penal evoca, antes de tudo, a expressão de uma festa (alegria, júbilo, satisfação), visto que, como dizia Niestzsche, o sofrimento do inimigo ou do desviado (do devedor), que perturbou a ordem social ou institucional, sobretudo quando veiculado por meio de algo aproximativo da vingança, traz em seu bojo um incomensurável prazer. O gozo e a satisfação gerados pelo sacrifício de um potente “bode expiatório”, agora exposto ao moderno pelourinho dos telejulgamentos midiáticos, equivalem às grandes conquistas patrióticas nacionais. É uma catarse que o povo, freudiana e psicanaliticamente, deseja para a purificação dos seus pecados.”[14]
Até o STF sucumbiu ao espetáculo.
Concluímos, então, que não há se falar em inquérito policial sem desmistificar velhos conceitos, desacreditar teorias que não mais se coadunam com a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito e, uma vez questionando as argumentações de inaplicabilidade de princípios constitucionais ao inquérito policial ou conceituações medíocres que se tornaram jargão no meio acadêmico evidenciadas pelo conceito de “mero procedimento informativo” só assim, evidenciando teorias hoje falhas, é que podemos discutir o papel do inquérito como meio de apuração das infrações penais.
E, desta feita, fazer frente ao populismo que toma viés imperial.
Somente nesta seara é que o investigado deixa de ser considerado mero objeto de investigação e conquista o status de pessoa, com o respeito a sua dignidade humana.
O que era tido como certo, antes da promulgação da nossa Constituição, hoje tem de ser revisto, amoldado a seus princípios, submetendo-se a seus preceitos. E isto tem de ser feito, sem reservas, sem preconceitos, sem empecilhos vulgares e, principalmente, sem acreditarmos que, por ser o inquérito policial um instrumento centenário, devamos nos acomodar.
Citando o Mestre Bismael B. Morais “no atual estágio do conhecimento humano, não é compreensível que se deva olhar para frente, caminhando-se de costas (...)[15] e no esteio desta assertiva esposamos nosso entendimento de alçar o inquérito policial ao seu verdadeiro patamar, considerando-o como instrumento de Justiça social, afinal um dos ideais de nossa sociedade.
O papel do inquérito policial restou evidenciado de fundamental importância na promoção da defesa dos direitos fundamentais, previstos na Constituição, considerando o investigado em sua qualidade de sujeito de direitos. De nada adiantam as tentativas de suprimi-lo, pois ele subsistirá. Não adiantam as tentativas de entregá-lo em outras mãos, elegendo o órgão acusatório como o pertinente a presidi-lo, pois este é parte. E parte não possui a isenção necessária à sua condução.
Nele (inquérito policial) não se defende tese. Busca-se a verdade! Aqui não se busca a promoção da Instituição. Cumpre-se a lei. O acesso é permitido. Não há procedimento outro que lhe faça sombra. E as autoridade policiais que os presidem cuidam para o desabrochar de um flor de lótus, extremamente branca, nascida das águas turvas e lodosas que permeiam os fatos trágicos de uma investigação criminal.
É nossa obrigação repensar seu posicionamento em nosso ordenamento jurídico, valorando-o como instrumento centenário, conhecendo-o de forma límpida, analisando-o sob o prisma de seus valores e finalidades e adequando-o aos nossos princípios constitucionais, sobretudo considerando a dignidade da pessoa humana como bem fundamental assegurado como espeque de nossa sociedade.
O caminho a ser traçado para análise do inquérito policial é somente o da sua interpretação conforme os parâmetros traçados pela Constituição. Afinal, não há que se falar em uma leitura da atual Constituição sob as premissas de textos envelhecidos ou doutrinas equivocadas.
A realidade exige uma visão mais estratégica dos modelos adotados, incluindo-se o inquérito policial. Isto implicaria num diferencial competitivo a médio e longo prazo, importando na valorização da Polícia Civil.
O inquérito policial, em seus 171 anos de existência, repercute hoje como instrumento de fundamental importância para a concretização de um patamar mínimo civilizatório.
Centenário sim, contudo, é o inquérito policial democrático, peça fundamental para a promoção da Justiça social, incólume ao populismo penal que permeia nossa sociedade corroendo a razão e mascarando a realidade.
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[1] TORRONEN, Jukka. Zero Tolerance, the media, and a local community. Journal of Scandinavian Studies um Criminoloogy and Crime Prevention. Vol. 5, 2004, p. 29
[2] Código Processo Penal, Exposição de Motivos, Decreto-Lei 3.689, de 1941.
[3] QUEIROZ FILHO, Dilermando. Inquérito Policial. Rio de Janeiro: Ed. Esplanada, 2000, p.46.
[4] LEAL, Antonio Luiz da Câmara. Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Ed. Freitas Bastos, 1942, p. 76.
[5] MONDIN, Augusto. Op. cit., p. 45.
[6] ROVEGNO, André. Op. cit., p. 91.
[7] ALMEIDA, João Canuto Mendes de. Princípios Fundamentais do Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.
[8] MARQUES, Tarcísio. Inquérito Policial. Revista ADPESP nº 29. v.1, São Paulo: ADPESP: julho 2000. p. 62.
[9] Investigação preliminar, Polícia Judiciária e autonomia. Artigo escrito com base nas ideias desenvolvidas por ocasião da palestra proferida pelo Prof. Luis Flávio Gomes, no Colóquio sobre inquérito policial promovida em parceria pela Academia da Polícia Civil/SP e Academia Nacional de Polícia/PF.
[10] ROVEGNO, André. Op. cit., p. 135.
[11] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 24ª edição. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 96. Vale aqui a máxima “faça o que eu falo e não o que eu faço”. Sob a premissa de Estado Democrático, a República Democrática Alemã fuzilava a todos que tentavam exercitar seu direito de ir e vir, dirigindo-se à Berlim Ocidental. Portanto, vale a lição da composição da ética e Direito.
[12] Tradução livre de trecho contido em WISEHART, M.K.. Newspaper and criminal justice. In: POUND, Roscoe; FRANKFURTER Criminal Justice in Cleveland. Reports of the Cleveland Foundation survey of the administration of criminal justice in Cleveland, Ohio. Philadelphia- WM. Fell Co. Printers, 1922, p. 526.
[13] SUMARIVA, Paulo. Criminologia, Teoria e Prática. Rio de Janeiro. Editora Impetus, 2013. P. 02.
[14] GOMES, Luis Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. Saraiva, 2013, p.20.
[15] MORAES, Bismael Batista. Direito e Polícia: uma introdução à Policia Judiciária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986.
Fonte: Site Atualidades do Direito