Sob risco de ineficácia, prisão não deve ser o centro do sistema penal brasileiro
Sob risco de ineficácia, prisão não deve ser o centro do sistema penal brasileiro Às vésperas de se despedir da magistratura, o ministro Hamilton Carvalhido, membro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Tribunal Superior Eleitoral, espera que a sociedade e o poder público reflitam com seriedade sobre o sistema penal brasileiro – aquele que temos, aquele que almejamos e, acima de tudo, aquele que venha, de fato, cumprir o que se propõe: reinserir o infrator na sociedade. Pois o que se vê hoje é um índice de reincidência criminal de ex-presidiários, ainda que os dados sejam imprecisos e estejam na mira de uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), na casa dos 70%.
Considerando-se ao mesmo tempo cético e esperançoso em relação ao tema, o ministro afirma não ter dúvida alguma “de que o sistema penal brasileiro que hoje se apresenta, tendo a prisão como seu núcleo ou com o discurso da ‘prisionalização’, se transforma quase que numa retórica ideológica”.
Para o ministro isso torna clara a realidade. “Não há quem não conheça a falta de efetividade das normas que integram esse sistema, não há quem não condene a pena de prisão como instrumento de ressocialização e de intimidação, não há quem não veja nela uma forma imprópria, mesmo em termos de retribuição, porque ela, na sua realidade, é sempre muito mais gravosa do que devia representar na sua essência”.
Experiência não lhe falta para falar sobre o assunto. Nos mais de 45 anos dedicados ao Direito, 42 deles foram na área penal, fosse como membro do Ministério Público ou como ministro do STJ. Mas sua contribuição ultrapassou os limites da Justiça. Foi ele que presidiu a Comissão de Juristas criada pelo Senado Federal para delinear o novo Código de Processo Penal (CPP). Também foi ele o presidente da subcomissão criada para propor os novos códigos Penal e Processual eleitorais.
Segurança: um anseio coletivo
Carvalhido observa que parece ser ponto comum que os centros de coerção “são centros de violação permanente de direitos fundamentais, que se transformam no mais formidável foco de criminalização”. Ou seja, é produtor de criminosos e de crimes. “Tenho como seguro que essas ideias fundamentais se apresentam quase como que irrefutáveis”, assevera. A própria história da prisão, a seu ver, é a história da sua progressiva eliminação por ser insuficiente em relação a todos os crimes que sempre foram ou que vieram sendo propostos.
Ele não ignora que, se for perguntado a qualquer membro da sociedade brasileira o que ele espera da legislação e da justiça, a resposta será sempre penas mais duras, mais rigorosas, com uma justiça penal mais efetiva e essa efetividade seria na segregação a mais duradoura possível ou a mais rigorosa possível para aqueles que cometem crime.
“É plenamente justificável esse grito pela segurança, essa busca pela segurança indispensável ao exercício daqueles direitos que fazem do indivíduo uma pessoa. Todavia tem que se interpretar adequadamente esse reclamo social. Na verdade, o reclamo pela prisão, pelo agravamento das penas é o reclamo por um sistema penal dotado de efetividade, por um sistema penal que efetivamente atribua segurança a cada uma das pessoas da nossa sociedade, às relações da vida. Não é o amor ou o apelo pela prisão, é um grito de socorro pela necessidade de segurança perante uma violência progressivamente crescente. Eu penso que essa é a interpretação possível desse reclamo”, acredita.
Dessa forma, continua, se fossem apresentadas à sociedade alternativas demonstrando que “o sistema penal efetivo, o sistema penal útil, o sistema penal que efetivamente protege, há de trilhar outro caminho, não tenho dúvida nenhuma de que o homem brasileiro escolheria esse caminho porque é o que o conduzirá à segurança”.
É necessário interpretar adequadamente as coisas, acredita o ministro. “Tenho que exatamente esse reclamo nos coloca diante daquilo que chamo de discurso formal, discurso ideológico, que não corresponde à verdade das coisas”. As soluções legislativas propostas e adotadas de agravamento das penas, de exasperação do tempo, sugestões que hoje são comuns e muito próprias do direito penal autoritário, de restrições de liberdades individuais se originaram desse pensamento coletivo, arraigado na sociedade.
“E sabemos que essas modificações no mundo apenas formal não vão conduzir a nenhuma transformação na realidade concreta da vida. Satisfazem talvez esse anseio coletivo do ponto de vista subjetivo de que alguma coisa foi feita e nela se deposita alguma esperança, uma esperança que não vai encontrar atendimento em nenhum momento. Pois o que se vê é um aprofundamento crescente da violência, da insuficiência dos estabelecimentos penais e, todavia, como que submetidos a um destino, caminha-se para um progressivo e permanente agravamento da situação”, assevera.
Sem encontrar outra saída, busca-se a solução dentro da própria prisão: estabelecimentos de segurança máxima, muros altos, artefatos tecnológicos que impeçam essa falência da própria segregação. Mas continua-se a seguir para um caminho inexorável de progressivo crescimento da violência e com um mal do qual não podemos dispensar, um mal único de que dispomos para responder ao mal do crime: a prisão.
No STJ, a Sexta Turma, colegiado integrante da Terceira Seção, especializada nas questões criminais, em 1999 já aplicava penas alternativas e reconhecia que o sistema penal brasileiro não atende às necessidades da sociedade. O ministro Luiz Vicente Cernicchiaro admite, no julgamento do (HC 8753/RJ), que a Lei n. 9.714, de 25 de novembro de 1998, foi recomendada, em boa hora, pela Criminologia diante da caótica situação do sistema penitenciário nacional. Para ele, a norma ampliou significativamente a extensão das penas restritivas de direitos, conferindo nova redação a artigos do Código Penal brasileiro. “Reclamam-se, pois, condições objetiva e subjetivas; conferem, aliás, como acentuam os modernos roteiros de Direito Penal, amplo poder discricionário ao Juiz. O magistrado, assim, assume significativa função, exigindo-se-lhe realizar a justiça material”.