Delegado pode e deve aplicar excludentes de ilicitude e culpabilidade
Por Henrique Hoffmann Monteiro de Castro
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Constatada a prática do delito por autoridade estatal legitimada a presidir a investigação (delegado de polícia) ou o processo (juiz de Direito), o ordenamento jurídico autoriza a prisão, em suas diferentes modalidades (artigo 5º, LXI da CF). E, como se sabe, para que o crime se aperfeiçoe, segundo seu conceito analítico, não basta tipicidade (formal e material), sendo preciso também ilicitude (teoria bipartite) ou ilicitude e culpabilidade (teoria tripartite).
Muito bem. A investigação policial é a linha de largada para uma persecução penal que atenda ao interesse da sociedade de elucidar crimes sem abrir mão do respeito aos direitos mais elementares dos investigados. Daí a importância da polícia judiciária, função essencial à Justiça[1] dirigida por delegado de polícia de carreira (artigo 144 da CF), que age stricto sensu em nome do Estado[2] e integra carreira jurídica[3].
Para conduzir com êxito o procedimento policial, a autoridade de polícia judiciária faz diversas análises técnico-jurídicas (artigo 2º, parágrafos 1º e 6º da Lei 12.830/13), prognósticas ou diagnósticas[4]. É dizer, faz juízos de prognose (decisão por uma ou outra diligência no início da investigação, diante da existência de poucos ou inexistentes vestígios) e de diagnose (decisão pelo indiciamento ou não, ou pela prisão em flagrante ou liberdade, face às informações e provas acerca da materialidade e autoria delitivas).
A análise dos requisitos do crime insere-se no contexto do juízo de diagnose, especialmente no momento da decisão sobre a custódia flagrancial. Isso significa dizer que a prisão em flagrante pode e deve ser afastada caso o delegado de polícia colha elementos robustos que evidenciem a existência de justificante ou dirimente. Afinal, o inquérito policial deve demonstrar não apenas a tipicidade, mas também a ilicitude e a culpabilidade[5]:
Não pode haver situação de flagrante de um crime que não existe (considerando-se os elementos de informação existentes no momento da decisão da autoridade policial). O delegado de polícia analisa o fato por inteiro. A divisão analítica do crime em fato típico, ilicitude e culpabilidade existe apenas para questões didáticas. Ao delegado de polícia cabe decidir se houve ou não crime[6].
As situações se apresentam simétricas com aquela em que se autoriza ao Ministério Público, diante de prova completamente estreme de dúvida quanto à ocorrência de excludente de ilicitude a abrigar a conduta do agente, deixar de oferecer denúncia e requerer ao juízo o arquivamento do inquérito policial[7].
Certo é que não se encontra proibição para que o delegado de polícia faça uma avaliação do fato levando em consideração elementos que apontem para as excludentes de ilicitude. Na verdade, a lei adjetiva, por diversos dispositivos, refere-se à infração penal ou crime, nunca aos componentes do crime (tipicidade, ilicitude, culpabilidade e outros), não se mostrando indevida a incursão pela autoridade policial nessa seara, mesmo que de modo superficial. (...) O delegado de polícia, importa enfatizar, possui grande importância no sistema penal, sendo a primeira autoridade que o ordenamento jurídico determina que analise o fato criminoso. Não é ele um frio e inveterado aplicador das normas estabelecidas, sendo permitido interpretar e aplicar o seu entendimento e, conquanto possa estar sujeito a eventuais críticas, tomando posições sólidas e bem fundamentadas, deverá ter em mente que emprestou sua colaboração para que se viva em um Estado Democrático de Direito, que é o fim último de todo agente do Estado[8].
Em que pese tais considerações, surpreendentemente parcela da doutrina[9] insiste com um pensamento retrógrado quanto à polícia Judiciária, no sentido de que o delegado de polícia deveria fechar os olhos à existência de excludentes de ilicitude e culpabilidade, ficando adstrito apenas à tipicidade, sendo obrigado a fazer a prisão em flagrante ainda que a pessoa não tenha praticado crime. Para esses autores, a autoridade de polícia judiciária seria mero autômato, máquina de encarcerar desautorizada a analisar todos os substratos do delito, e o suspeito consistiria em um objeto, adquirindo a condição de sujeito apenas na fase processual. Olvidam-se que um minuto de prisão indevida é uma infinidade para o injustamente segregado.
Ora, impor a segregação de alguém que pratica fato típico, porém não ilícito, equivaleria a abandonar a teoria da ratio cognoscendi em prol da rechaçada teoria da ratio essendi, fundindo o fato típico e a ilicitude num tipo total do injusto e se esquecendo que a cisão entre fato típico e ilicitude é consenso relativamente antigo, desde a teoria do delito-tipo[10]. E prender indivíduo sem perquirir sua reprovabilidade consistiria em reconhecer ilícito penal dissociado de seu autor, admitindo um sistema penal focado na norma em vez do ser humano, colocando-o em segundo plano[11].
Obviamente não se defende a liberação irresponsável de criminosos surpreendidos em flagrante à primeira alegação de que agiu amparado por descriminante. Meras ilações não traduzem automático e indiscriminado alvará de soltura para astutos infratores. Fala-se aqui de justificante ou dirimente escorada em fortes elementos informativos e probatórios, reconhecidos em decisão da polícia judiciária que transforma o juízo de possibilidade em probabilidade, sem ainda configurar a certeza (ausência de dúvida razoável) exigida somente ao final do processo. Isto é, para afastar a decretação da prisão em flagrante, a excludente deve ser perceptível primo ictu oculi, ao primeiro lançar de olhos.
Tampouco se incentiva a informalidade: todos os vestígios merecem ser reunidos em inquérito policial e submetidos às comuns formas de controle, seja interno (Corregedoria de polícia), externo (Ministério Público), judicial ou social.
Cabe destacar, de igual maneira, que o fato de o delegado não determinar a lavratura de auto de prisão em flagrante contra aquele que pratica fato típico, porém não ilícito ou culpável, não significa que o suspeito não deva ser conduzido à delegacia de polícia. Claro que será submetido à captura e condução coercitiva, pois o policial fardado, agente da autoridade policial[12], não pertencente a carreira jurídica e faz apenas um juízo aparente de tipicidade, não se imiscuindo em análises mais aprofundadas.
Entender de modo diverso equivaleria a forçar a autoridade policial a prender em flagrante o policial que se defende do criminoso armado (legítima defesa), o médico que faz cirurgia emergencial para salvar a vida do paciente (estado de necessidade), o oficial de Justiça que cumpre mandado de penhora domiciliar (estrito cumprimento do dever legal), o pai que corrige o filho moderadamente (exercício regular de direito), o adolescente que pratica ato infracional (inimputabilidade), e aquele que age sob coação moral irresistível ou obediência hierárquica (inexigibilidade de conduta diversa) ou sob erro de proibição inevitável (ausência de potencial consciência da ilicitude).
Por isso, a doutrina afirma que:
Não podemos diminuir a importância do delegado de polícia afirmando que ele deve fazer apenas um juízo de tipicidade ou de subsunção entre os fatos e o tipo penal. Cabe a autoridade de polícia judiciária analisar o fato como um todo, com todas as suas peculiaridades e decidir fundamentadamente[13].
Não convence o argumento de que a análise da autoridade policial deve ser superficial, atendo-se tão somente à aparência da tipicidade formal, isso sob pena da admissão de que o sistema processual penal é erigido tendo um ator que não somente é autorizado, mas obrigado a agir violando sua consciência jurídica, bem como, o que é pior, lesionando os direitos fundamentais de alguém por mera formalidade. Seria o império de uma burocracia (ou “burrocracia”) autoritária. (...) Não tem cabimento constranger uma Autoridade a fingir que não percebe a inexistência de delito a ser imputado a alguém, prendendo essa pessoa mesmo assim[14].
Não se trata aqui, a nosso ver, de relaxamento de prisão, uma vez que ela não chegou sequer a ser efetivada, tampouco formalizada. Melhor definir tal hipótese como recusa em iniciar a prisão, ante a ausência de requisitos indiciários mínimos da existência de tipicidade ou antijuridicidade. Evidentemente, a autoridade policial não precisa prender em flagrante vítima de estupro ou roubo que, claramente em situação de legítima defesa, matou seu agressor. O juízo sumário de cunho administrativo pode ser efetuado, ainda que isso só possa ocorrer em situações absolutamente óbvias e claras de ausência de infração penal[15].
Manter preso o cidadão que se comportou tal como a lei natural e a legislação penal autorizam, ao defender a própria vida ou a de outrem, pode definir-se como procedimento que desaponta a expectativa comum e constitui motivo de justa apreensão para quantos, habitando na grande cidade de vida tornada agressiva, possam eventualmente vir a ser alvo de violência, como a de início descrita[16].
Caso haja fatos novos que divirjam dos elementos até então colhidos, indicando possível existência de crime, nenhum prejuízo há que num inquérito policial instaurado por portaria se dê seguimento às investigações. Se for o caso, aplica-se em vista do novo fato, a representação pela prisão preventiva ou outra medida cautelar[17].
O delegado de polícia, autoridade estatal que, assim como o magistrado, age com isenção e concentra em suas mãos o poder de decidir sobre o direito de ir e vir dos cidadãos, não deve atuar como um reles chancelador de capturas[18], abrindo mão de sua independência funcional e adotando odiosa atuação robotizada[19].
Mais do que um poder da autoridade de polícia judiciária, o reconhecimento de causa excludente de ilicitude ou culpabilidade é um dever no desempenho da sua missão de garantir direitos fundamentais, devendo ser repelidas eventuais interferências draconianas em detrimento do interesse público.
A persecução penal não pode abdicar da franquia constitucional de liberdades públicas, devendo a lei se adequar à Constituição, e não o contrário. Encarcerar alguém, deixando de analisar a relação de antagonismo de sua conduta com o ordenamento jurídico (ilicitude) ou mesmo a reprovação de seu comportamento (culpabilidade), fere a concepção moderna e democrática do sistema processual penal.
Não faz sentido alijar o delegado de polícia, autoridade vocacionada a conduzir a fase investigativa, dos raciocínios jurídicos necessários ao bom desempenho de seu mister, empurrando o indivíduo para a ilicitude por intermédio de indevida privação da liberdade.
É um direito de cada cidadão que a autoridade de polícia judiciária sirva como o primeiro anteparo de proteção do Estado na persecução penal, razão pela qual não se deve subtrair do delegado de polícia sua análise jurídica fundamentada apta a obstar encarceramentos desnecessários.
Referência:
[1] NICOLITT, André Luiz. Manual de processo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 178.
[2] STJ, RMS 43.172, rel. min. Ari Pargendler, DJe 22/11/2013.
[3] STF, Tribunal Pleno, ADI 3.441, rel. min. Carlos Britto, DJ 9/3/2007.
[4] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Juízos de prognose e diagnose do delegado são essenciais na investigação. Revista eletrônica Consultor Jurídico, ago. 2016. Disponível em: . Acesso em 9/8/2016.
[5] LOPES JÚNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 216.
[6] BIANCHINI, Alice; MARQUES, Ivan Luis; GOMES, Luiz Flavio; CUNHA, Rogério Sanches; MACIEL, Silvio. Prisão e medidas cautelares. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 139.
[7] AVENA, Norberto. Processo penal esquematizado. São Paulo: Método, 2013, p. 889-890.
[8] FRANCESCHI, Marino. As excludentes de ilicitude penal e a possibilidade de reconhecimento pelo delegado de polícia na atividade policial. In: LOPES, Fábio Motta; WENDT, Emerson (Org.). Investigação criminal: ensaios sobre a arte de investigar crimes. Rio de Janeiro: Brasport: 2014, p. 37-39.
[9] NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 568.
[10] BELING, Ernst Von. La doctrina del delito-tipo. Buenos Aires: Depalma, 1944.
[11] BRANDÃO, Cláudio. Culpabilidade: sua análise na dogmática e no Direito penal brasileiro. Revista de Ciências Penais, n. 1, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 172.
[12] TORNAGHI, Hélio. Instituições de Processo Penal. v. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 406.
[13] SANNINI NETO, Francisco. Delegado de polícia e as excludentes de ilicitude. Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 20, n. 4416, 4 ago. 2015. Disponível em: . Acesso em 10/8/2016.
[14] CABETTE, Eduardo Luiz Santos. O delegado de polícia e a análise de excludentes na prisão em flagrante. In: Âmbito Jurídico, Rio Grande, XIV, n. 95, dez 2011. Disponível em: . Acesso em 10/8/2016.
[15] CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 363.
[16] MARREY, Adriano. Legítima defesa exclui possibilidade de prisão. Revista dos Tribunais, São Paulo, ano 80, v. 665, 386-387, março de 1991.
[17] CAMPOS. Fábio Henrique Fernandez de. Excludente de ilicitude dispensa prisão em flagrante. Revista eletrônica Consultor Jurídico, ago. 2011. Disponível em: . Acesso em 4/8/2016.
[18] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Delegado pode e deve aplicar o princípio da insignificância. Revista eletrônica Consultor Jurídico, ago. 2015. Disponível em: . Acesso em 18/8/2015.
[19] CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de; SANNINI NETO, Francisco. Independência funcional é prerrogativa do delegado e garantia da sociedade. Revista eletrônica Consultor Jurídico, jun. 2016. Disponível em: .
SOBRE O AUTOR:
Delegado de Polícia Civil do Paraná, mestrando em Direito pela Uenp e especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Professor da Escola da Magistratura do Paraná, da Escola do Ministério Público do Paraná, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e da Escola Nacional de Polícia Judiciária. Também é professor e coordenador do Curso CEI e da Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faipe.