adepolrn@gmail.com (84) 3202.9443

Da possibilidade do delegado decretar medidas protetivas em favor da vĂ­tima

Da possibilidade do delegado de polícia decretar medidas protetivas em favor da vítima de crimes perpetrados no âmbito doméstico

Ronaldo Batista Pinto
Promotor de Justiça do estado de SP. Mestre em Direito pela UNESP.


Introdução - Importante alteração na lei 11.340/2006 – a primeira após quase 10 anos de vigência da chamada lei Maria da Penha – é hoje objeto de debate no Senado Federal, com a votação do PLC 7/2016, oriundo da Câmara e de autoria do Deputado Sérgio Vidigal.

Dentre outras propostas, consideradas salutares – como a obrigatoriedade de atendimento da vítima, preferencialmente, por servidoras de sexo feminino, bem como a previsão de que esse atendimento não sofra nenhuma solução de continuidade (a presumir, assim, que seria prestado inclusive nos finais de semana, pelas delegacias especializadas) - um outro ponto tem chamado a atenção dos operadores do Direito, e vem sendo objeto de crítica por órgãos ligados ao setor, quer da sociedade civil, quer do Ministério Público, Defensoria Púbica e Magistratura. Consiste, exatamente, na alteração que se pretende incluir no art. 12 da lei.

Pela redação atual deste dispositivo, verificada uma hipótese de violência doméstica e familiar contra a mulher, cumpre à autoridade policial adotar as medidas elencadas na lei, dentre as quais a oitiva da vítima, a colheita de provas, a elaboração do exame de corpo de delito e o envio, no prazo de 48 horas, de “expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência” (inc. III, do art. 12 da lei).

O mencionado projeto de lei pretende incluir, na lei Maria da Penha, o art. 12-B, de modo a permitir que o delegado de polícia, “verificada a existência de risco atual ou iminente à vida ou integridade física e psicológica da vítima ou de seus dependentes”, aplique “as medidas protetivas de urgência previstas no inciso III do art. 22 e nos incisos I e II do art. 23 da lei 11.340”. É dizer: as medidas protetivas de urgência que, pela redação atual da lei, na dicção de seu art. 18, são de aplicação privativa do juiz de direito, que deverá decidir, no prazo de 48 horas, passariam a ser aplicadas, também, pela autoridade policial.

Posições contrárias ao projeto - Contra essa inovação se posicionaram vários órgãos, dentre os quais, segundo notícia veiculada no site do Ministério Público do Estado de São Paulo, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a Associação Nacional do Ministério Público (CONAMP) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), o Fórum Nacional dos Juízes de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher (Fonavid) e o Instituto Maria da Penha1.

O principal argumento empregado por tais entidades consiste no fato de que essa alteração não trará qualquer espécie de efetividade à matéria, isto é, em nada lhe será benéfico. A posição do Ministério Público do Estado de São Paulo é no sentido de “não há garantia de que esse artigo importará em real proteção às vítimas de violência doméstica, o que pressupõe a capacitação das autoridades em gênero, a articulação com a rede, um atendimento multidisciplinar e a criação de um procedimento com participação do Ministério Público e da Defensoria Pública”2 .

A CONAMP (Associação Nacional dos Membros de Ministério Público), emitiu a Norma Técnica n. 5/2016, quando se posiciona contrariamente ao projeto, especialmente no ponto que prevê a possibilidade da autoridade policial decretar as medidas protetivas de urgência. Alude, primeiro, à inconstitucionalidade da inovação, por malferir o “princípio da reserva da jurisdição”. É que, segundo aquele órgão de classe, “não é constitucional que a restrição de direitos fundamentais sensíveis seja transferida da esfera judicial para a esfera policial, ao argumento simplório de que supostamente o Poder Judiciário seria lento ou omisso em suas decisões”. E prossegue: “a decisão de medidas protetivas de urgência é uma grave ingerência nos direitos fundamentais do investigado. Especialmente as medidas protetivas de urgência previstas no art. 12, inciso lIl, da lei 11.340/2006, implicam em restrição ao direito de locomoção do investigado, como a proibição de aproximação dos familiares da vítima e a proibição de frequentar determinados lugares”. Por fim, invoca a improdutividade da medida, já que a lei prevê prazos relativamente curtos para que o juiz aprecie o pedido de concessão de medidas protetivas, Além disso, as delegacias de polícia, posto que sabidamente assoberbadas de trabalho, não dariam conta dessa incumbência, com a agravante de que o cumprimento da medida deixaria se ser atribuição de um oficial de justiça para se transferir a um investigador de polícia. Aduz a norma técnica, ainda, que uma vez aprovada a alteração, o juiz passaria a se constituir em mero homologador de uma decisão que, antes, já fora tomada pelo delegado de polícia3.

Nosso posicionamento – Iniciamos por refutar a argumentação da CONAMP. Afirmar-se que a inovação violaria o “princípio da reserva da jurisdição”, pareceu-nos ir longe demais. Lembre-se que a medida protetiva não tem qualquer cunho de pena (cuja imposição, por óbvio, é privativa do juiz, após o transcurso do devido processo legal), e que, uma vez determinada pelo delegado de polícia, levará sempre em conta o benefício da vítima. Medidas muito mais graves, por importarem na privação da liberdade da pessoa, como a prisão em flagrante do agente e a concessão – ou não – de fiança, com o arbitramento do valor a ser recolhido pelo agente, já são atribuídas à autoridade policial, sem que ninguém, ao que se saiba, tenha agitado com a inconstitucionalidade dos dispositivos do Código de Processo Penal que tratam da matéria. Em outras palavras: se pode o delegado policial deliberar sobre um dos bens mais caros da pessoa, que é a liberdade (decretando sua prisão em flagrante, estipulando o valor da fiança, etc.), por qual motivo não estaria legitimado a impor medidas de proteção em prol de uma vítima de violência doméstica? Temos como óbvia a contradição desse argumento.

Destaque-se, ainda, que especialmente neste tópico, a CONAMP revelou muito mais preocupação com a tutela do agressor do que, exatamente, com a proteção da vítima, ao afirmar que “a decisão de medidas protetivas de urgência é uma grave ingerência nos direitos fundamentais do investigado”. Não queremos dizer, com isso, que uma entidade de classe que congrega membros do Ministério Público não deva ter essa espécie de cuidado. Mas parece um pouco desfocado que, ao se debater alterações na exatamente na lei Maria da Penha, seja invocada essa espécie de argumento.

Aduz a norma técnica, ainda, que a previsão de prazos relativamente curtos nos quais o juiz deve decidir sobre a eventual concessão de medidas protetivas, torna desnecessária a inovação em exame. Aqui se impõe a análise do que consistiriam esses prazos relativamente curtos. Vale anotar que, nos termos do inc. III, do art. 12 da lei 11.340/2006, cabe à autoridade policial “remeter, no prazo de 48 (quarenta e oito) horas, expediente apartado ao juiz com o pedido da ofendida, para a concessão de medidas protetivas de urgência”. O juiz, de sua parte, tem mais 48 horas para decidir a respeito, nos termos do art. 18 daquele diploma. Em tese, portanto – não queremos afirmar que na prática isto ocorra com frequência – é possível que se transcorra um prazo de 96 horas (ou quatro dias) entre a agressão e a decretação da medida (sem se computar, aqui, a demora de sua efetivação através do meirinho). De se rever, assim, o conceito da CONAMP no que se refere a prazos relativamente curtos.

Imagine-se, apenas para concluir, a situação, verificada com constância na praxis, na qual em uma 6ª feira, às 20 horas, o delegado de polícia, durante seu plantão, se depara com uma vítima de agressão perpetrada no âmbito doméstico, da qual resultaram lesões corporais leves na ofendida. Deve prender em flagrante o agressor e, sendo cabivel, impor-lhe a fiança. Em outras palavras: como é comum, sairão todos juntos (agressor e vítima), pela porta da frente da Delegacia de Polícia. Caso implantada a novidade, poderá a autoridade policial, de plano, determinar o afastamento do agressor do lar conjugal, impedindo, dessa forma, seu retorno, a precaver sério risco à ofendida e evitando aquela outra alternativa, vexatória à própria dignidade da justiça. Ao contrário, mantido o regramento atual, a comunicação do flagrante somente será comunicada ao juiz no dia seguinte e, eventual medida protetiva, também, somente será deferida no sábado. Poderá ser tarde demais !

Não nos parece correto, ainda, afirmar-se que, em virtude das delegacias de polícia se encontrarem assoberbadas de trabalho, não reuniriam condições de efetivara as medidas protetivas impostas pela autoridade policial. A um, porque assoberbadas encontram-se também as varas especializadas no trato da violência doméstica ou as varas criminais que, enquanto não implantadas aquelas primeiras, conhecem da matéria. E, a dois, em virtude de que, supondo-se como correta essa premissa, cumpre ao poder público, equipar as delegacias de modo a fazer frente a inovação sugerida pelo projeto.

Destaca, ainda, a posição da CONAMP, uma suposta agravante: consiste no fato de que a medida protetiva não mais seria efetivada por meio de um oficial de justiça, mas sim de um agente policial. Esse posicionamento, a par de demonstrar certo desconhecimento prático do tema, ataca um dos pontos que pode conferir maior efetividade uma vez aprovado o projeto. Afinal, são frequentes as dificuldades que meirinhos encontram quando da intimação do agressor quanto às medidas protetivas que foram impostas em prol da vítima. Ora, alguém duvida que um investigador de polícia, chegando ao local com uma ou mais viaturas, municiado com uma arma de fogo e acompanhado de outros agentes, reúne condições muito mais favoráveis que o oficial de justiça para a intimação e efetivação das medidas?

Equivocada, por último, a alegação de que, aprovada a mudança, o juiz passaria a se constituir em um mero homologador da anterior decisão da autoridade policial. Claro que não. Ao juiz será sempre reconhecida a possibilidade de revogação da medida. Ao suposto agressor, se reconhece a legitimidade de pedir essa revogação e, em caso de negativa, valer-se do habeas-corpus. Ao Ministério Público, caso detecte algum exagero, cumpre adotar as medidas cabíveis à espécie, inclusive de cunho penal, com a deflagração de inquérito policial a fim de apurar eventual crime de abuso de autoridade na ação do delegado de polícia. Não se constata, assim, qualquer capitis diminutio da função jurisdicional, salvo se inspirada por uma exagerada e indevida sensibilidade do juiz, a se sentir desautorizado com a inovação. Ao revés, ao se permitir que reveja a medida imposta pela autoridade policial, tem valorizada sua função.

Temos como equivocada, ainda, a justificativa do Ministério Público do Estado de São Paulo quando se opõe à inovação, embora reconheçamos a competência de seus agentes que se dedicam especificamente ao enfrentamento da violência doméstica. Reconhecimento que - muito mais relevante – não é nosso, mas da sociedade que vê no parquet paulista o órgão vocacionado ao trato da matéria, mercê de inúmeras iniciativas de sucesso que implantou nessa área de atuação.

Anotamos, porém, que a oposição ao projeto sob o argumento de que seria necessária, antes da decretação de uma medida protetiva, uma articulação multidisciplinar, com a participação, inclusive, do próprio Ministério Público e da Defensoria Pública, não nos parece, por si só, justificável. Vale destacar, que a legislação em vigor, não prevê, pelo menos no estágio inicial, essa espécie de articulação e, nem ao menos, a participação do parquet e da Defensoria Pública. Com efeito, o art. 18 da lei Maria da Penha, determina que o juiz, após decidir sobre o pedido da ofendida (concedendo-lhe ou não as medida protetivas), comunique o Ministério Público (inc.III). Embora a praxis seja a oitiva do parquet, não há qualquer obrigação legal que seja assim. Quanto à Defensoria Pública, ela é omitida nesse estágio procedimental. Tampouco não é prevista qualquer manifestação de uma equipe multidisciplinar nesse momento. A urgência que o caso indica, a impor seja proferida uma decisão rápida, não permite que, nesse momento, tal cautela seja adotada. Soma-se a isso o notório fato consistente na precariedade verificada nos órgãos de apoio deste país continental, quase que a impedir a adoção dessa proposta. É dizer: se para que o juiz imponha uma medida protetiva não é necessário que se cerque das cautelas acima listadas, também não de deve exigi-las para o delegado de polícia, quando imbuído da mesma atribuição.

Viés corporativista na resistência à inovação – Conquanto reconheçamos a salutar intenção dos órgãos refratários à alteração legislativa, todos fortemente empenhados no aprimoramento da legislação que trata da violência contra a mulher, somos obrigados a apontar um certo viés corporativista na resistência. Deve-se recordar que o delegado de polícia possui, obrigatoriamente, formação jurídica e assume as funções que lhe são inerentes mediante a aprovação em concurso público, tal qual juízes, promotores e demais membros das chamadas carreiras jurídicas. Inexiste, outrossim, qualquer subordinação hierárquica entre o delegado de polícia, o promotor de justiça e o juiz de direito, Essas impressões são reforçadas pela lei 12.830/2013, que, em seu art. 2º, identifica as funções de polícia judiciária como de natureza jurídica e determina que ao delegado de polícia seja dispensado “o mesmo tratamento protocolar que recebem os magistrados, os membros da Defensoria Pública e do Ministério Público e os advogados” (art. 3º).

Bem por isso, já assentou no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, quando da análise de uma prisão em flagrante, que "o Delegado de Polícia não tem função robotizada. É bacharel em Direito. Submete-se a concurso público. Realiza, na própria Instituição, cursos específicos. Tem, na estrutura de sua função, chefias hierárquicas e órgão correcional superior. Não se pode, pois, colocar seu agir sempre sob a suspeita de cometimento de crime de prevaricação, caso não lavre o flagrante, principalmente quando esse seu agir pressupõe decisão de caráter técnico-jurídico, como o é no caso do auto de flagrante. Está na hora, pois, mormente neste momento em que se procura alterar o Código de Processo Penal, de se conferir ao Delegado de Polícia regras claras e precisas para que o exercício de sua função não seja um ato mecânico, burocrático, carimbativo, dependente, amedrontado ou heroico, enfim, não condizente com a alta responsabilidade e dever que a função exige, até para que se possa cobrar plenamente essa responsabilidade que lhe é conferida e puni-lo pelos desvios praticados" (HC 370.792).

Conclusão – Face a tudo que expusemos, não temos dúvida em indicar a aprovação do projeto de lei em discussão no Senado. Apartando-se eventuais posicionamentos corporativistas, é induvidoso que a inovação contribui para que se atinja o escopo principal da lei, consistente na efetiva proteção da vítima de violência doméstica. Ao dotar o delegado de polícia com a faculdade de impor medidas protetivas de urgência, com a indicação de um agente policial que, de imediato, cumprirá o que foi determinado, confere especial efetividade ao diploma legal, pois se trata de providência que, dotada de celeridade, revela-se apta a evitar um mal maior. Dos parlamentarem aguarda-se que ajam com a sensibilidade que a questão reclama.

____________________

1 Site www.mpsp.mp.br, link “notícias”, de 17.06.2016.

2 idem

3 Site www.conamp.org.br, link “notícias”, de 15.06.2016.
____________________