Principio da insignificância e Delegado de PolĂcia
Por Luís Carlos de Almeida Hora
Delegado de Policia em Rondônia
O tema não é novidade e o Delegado que se introduz nessa seara sempre teve problemas, sobretudo em Estados mais populosos, em que o sistema de Justiça Criminal possui estrutura mais consolidada.
Até bem pouco tempo, a dogmática penal que dominava era a teoria finalista da ação, em que o tipo não era entendido com dimensões materiais. O tipo possuía apenas uma dimensão descritivo-formal. O fato é ou não típico, traduzindo infração penal. Não se falava que, além de corresponder à letra da lei, a conduta haveria de ofender um bem, que teria de ser jurídico, relevante, e que esse ataque ao bem jurídico relevante à sobrevivência da sociedade teria de ser insuportável quando, só então, o direito penal atuaria, em "ultima ratio".
Portanto, a insignificância estava na ilicitude, não na tipicidade. Então, quando o Delegado falava de insignificância, estava falando de ilicitude. E discussão sobre ilicitude sempre foi reservada à fase processual da persecussão, nunca à fase extrajudicial. Mesmo nos casos de legitíma defesa, estado de necessidade,..., escancarados. Matéria do juízo, não da Delegacia. Processo de partes, com contraditório e juízo de valor.
Como a prevalência, modernamente (e muito modernamente mesmo), das teorias funcionais, o Tatbestand (o termo tipicidade é oriundo do direito alemão) passou a ser entendido como: juízo de tipicidade = tipicidade formal + tipicidade material.
Não se trata mais de uma atividade mecânica, formal, de subsunção do fato ao tipo: subtraiu um bem, é furto. Subtrair um bem é furto desde que o bem não tenha ínfimo valor, a conduta tenha algo mais que mínima repercussão social, o bem jurídico seja atingido de forma insuportável.
Agora, o Delegado produz um juízo de valor. E esse é todo o cerne da questão. Portanto, há quem diga que o Delegado só pode analisar a tipicidade em seu aspecto formal.
É bem verdade que o Delegado está para o Juiz, como a administração está para a jurisdição. Refutem, mas o Delegado pode ser entendido como “juiz de fato”. Não temos “juris dictio”, não podemos falar em imparcialidade. Mas, dentro de nossa seara administrativa, temos de ser, necessariamente, NEUTROS. Delegado está para Juiz assim como a neutralidade está para a imparcialidade. Nossa finalidade é apurar o fato com todas as circunstâncias. Na fase extrajudicial, o “julgamento” é todo nosso. Não acusamos, não somos parte, não temos interesse processual no deslinde do caso, não somos, portanto, similares a Ministério Público. MP é parte. Não defendemos, não temos interesse, não somos parte como o advogado ou defensor publico. Nossa atividade tem de ser neutra e isso não retira nossas características, também de excelência, para a atividade jurídica.
É importante, também, verificar que temos um “papel social”, o qual não é necessariamente jurídico. Em suma, é o que a sociedade espera de nós e, por via de consequência, o que o “sistema” espera de nós. O que o sistema espera do MP é que acuse como parte; o que o sistema pensa da defensoria é que defenda, o que o sistema pensa do juiz é que julgue, ponderando, dando um pouco a cada um de acordo com seu merecimento. A sociedade não vai até eles na situação de desespero, mas vem até nós, Delegados, e nos plantões da vida, representamos o Estado com todo o vigor. É na Delegacia que se decidirá tudo, nos juízos de fato que fizer a autoridade policial.
O Delegado Dr Luiz Roberto Mattos, companheiro de profissão, já me disse, outrora (não sei se permanece com esse pensamento), ou você analisa a insignificância e libera logo no b.o., arquivando-o, ou então prende logo e deixa a dimensão judicial para análise na fase judicial. Não cabe grandes disquisições teóricas para, finalmente, arquivar. Dizia ele, no seu peculiar linguajar “é bucha, carinha...”
Não posso negar que essas conclusões do colega tenha tudo a ver com o que acontece na prática, no dia a dia. Todavia, pensamos que o tema “dimensão material” da conduta é possível de análise por Delegado de Polícia, todos mediante decisão fundamentada.
O Delegado deve analisar a dimensão material da conduta para AFASTAR A CONSTRIÇÃO DE LIBERDADE. Assim, entendendo presente o juízo de insignificância, pode afastar a prisão em flagrante, nada obstante preservem-se os demais atos, determinando-se instauração do correlato Inquérito.
Lembramos que no principio da insignificância estão inseridas várias gradações bagatelares. Quando há bagatela do próprio fato, não há crime: furto de uma caixa de fósforos é bagatela do próprio fato e não há, nem pode haver, persecutio. Casos há que o fato não é bagatelar, mas é mínimo. Aí é necessário aferir se há, ainda, bagatela do autor. Tratando-se de autor sem antecedentes, uma será a análise, mas em se tratando de furtador contumaz, e.g., a solução bem poderá ser outra. Tudo depende do caso concreto.
Enfim, o melhor é que houvesse permissivo legal autorizando o Delegado a analisar a bagatela para, mesmo para os que entendem que esse juízo é seara do processo.
No entanto, esse positivismo ferrenho não vige mais. O Delegado de Polícia, como primeiro garantidor das garantias individuais, deve analisar a bagatela e afastar a constrição de liberdade quando o caso o comporte.
Fonte: https://jus.com.br/pareceres/34494/principio-da-insignificancia-e-delegado-de-policia