adepolrn@gmail.com (84) 3202.9443

Polícia Militar não pode lavrar Termo Circunstanciado: cada um no seu quadrado

Por Alexandre Morais da Rosa e Salah H. Khaled Jr.
A Polícia Militar, cada vez mais, arvora-se numa função que não é sua: lavrar Termos Circunstanciados e protagonizar investigações. A situação potencializa-se no caso do Estatuto do Torcedor e do Policiamento Ambiental. A Polícia Militar é instituição reconhecida pela Constituição da República e, embora possamos ter divergências quanto à militarização do cotidiano, merece o respeito por suas funções, dentro dos limites legais. No Estado Democrático de Direito o exercício do poder estatal está limitado pela lei. Quando transborda é ilegal.


Daí que a Constituição da República estabelece de forma clara a divisão de competências no âmbito das forças de segurança pública. Dispõe o art. 144, § 4º, que "às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem, ressalvada a competência da União, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais, exceto as militares." Por outro lado, o § 5º do mesmo artigo determina que "às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública". É de se concluir, que a Polícia Militar, por força do art. 144 da Constituição da República, possui a função tão somente de realização de policiamento ostensivo e, como qualquer outro cidadão, prender em flagrante delito. A Polícia Judiciária é da Civil, frise-se. Logo, ao se realizar a apreensão de um cidadão, esse deve ser levado à presença da Autoridade Policial, a qual não se confunde com Sargento ou Tenente da Polícia Militar. Ainda, nada obstante existam atos administrativos de Tribunais reconhecendo essa competência, são flagrantemente inconstitucionais. Formam o que L.A. Becker chama de micro-legislação esterilizante da Constituição. E qualquer um deveria saber que por ausência de Lei em sentido estrito descabe ao ato administrativo revogar/modificar o Código de Processo Penal. Estamos no paraíso dos atos administrativos manipuladores da Constituição em nome da eficiência. A situação se aproxima muito do que Zaffaroni – a partir de Lola Aniyar de Castro – refere como sistema penal subterrâneo: todas as agências executivas exercem algum poder punitivo à margem de qualquer legalidade ou através de marcos legais bem questionáveis, mas sempre fora do poder jurídico. A situação gera um paradoxo: o poder punitivo se comporta fomentando atuações ilícitas. Para ele, “[...] a criminalização secundária é quase um pretexto para que agências policiais exerçam um controle configurador positivo da vida social, que em nenhum momento passa pelas agências judiciais ou jurídicas [...] este poder configurados positivo é o verdadeiro poder político do sistema penal”.[i]


Evidentemente, não estamos aqui satanizando a Polícia Militar, apenas indicando seu lugar.O problema reside na naturalização irrefletida de práticas autoritárias, que não são percebidas como ruínas na paisagem. Em outras palavras, as ilegalidades são reproduzidas na maioria das vezes por falta de permeabilidade democrática dos vetores constitucionais: simplesmente não são percebidas como tais. A partir desse tipo de incompreensão, são expandidos de forma incontrolada meios de controle manifestamente antidemocráticos, resquícios de um período relativamente recente da história brasileira, que ainda não foram erradicados.  Deve ser destacado que os limites da autoridade prevista no art. 69 da Lei 9.099/95 não deve contrariar a sistemática estabelecida pelo Poder Constituinte (originário), na medida em que este, por previsão expressa, atribuiu à Polícia Judiciária a competência para exercer atos de investigação. Como se sabe, o Termo Circunstanciado, conquanto diverso tecnicamente do Inquérito Policial, integra a fase pré-processual, com possibilidade inclusive de requerimento de diligências (exame pericial etc.), e, portanto, faz parte do rol de competências atribuídas à Polícia Civil.


A questão foi trabalhada por um dos subscritores no livro Guia Compacto de Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos[ii], especificamente no que concerne ao Inquérito Policial, e sobre quem teria competência para investigar (grifou-se):  “2.1. A partir da notícia de possível crime, o Estado precisa realizar a apuração preliminar com o fim de levantar elementos mínimos de materialidade e indícios de autoria. Do contrário, corre-se o risco de se iniciar a ação penal sem elementos mínimos. Não se irá aqui discorrer sobre as diversas modalidades de investigação existentes no mundo, ou seja, se quem deve investigar é o Ministério Público, o Magistrado ou a Polícia. Nesse Guia Compacto se irá demonstrar o lugar (pré-jogo processual) e a função (elementos de materialidade e autoria) do Inquérito Policial em face da normatividade brasileira. 2.2. A função do IP é levantar elementos de materialidade e autoria da conduta criminosa (meios probatórios, informantes, testemunhas, perícias, documentos, etc), justificando democraticamente a instauração de ação penal (CPP, art. 12), ou seja, para que o jogo processual possa ser iniciado a partir da autorização do Estado-Juiz (recebimento motivado da denúncia e/ou queixa crime). Para instauração de ação penal é necessária a existência de justa causa (elementos de materialidade e autoria) a ser aferida por investigação e/ou documentos preliminares. De regra, realiza-se por Inquérito Policial (CPP, art. 4o, sgts.), o qual é procedimento administrativo, não jurisdicional, a cargo da Polícia Judiciária – Estadual ou Federal (art. 144, § 4º, CR), submetido aos princípios da administração pública (legalidade, publicidade, impessoalidade, moralidade e eficiência – CR, art. 37). Evita-se que a ação penal possa ser instaurada como aventura processual, dado que o simples fato de ser acusado já “etiqueta”[iii] o sujeito para todo o sempre, mesmo que absolvido ao final. De sorte que é necessário o controle, por parte do Judiciário, dos requisitos para o exercício da ação penal. (...) 2.4. A Polícia Militar é órgão da segurança pública e compete a polícia ostensiva e preservação da ordem pública, sem qualquer competência para instaurar ou conduzir investigações policiais, salvo nos crimes militares, mesmo no âmbito dos Juizados Especiais (CR, art. 144, § 5º). Assim também a Polícia Rodoviária Federal (CR, art. 144, § 2º) e a Polícia Ferroviária Federal (CR, art. 144, § 3º). Decorre disto que não podem requerer medidas cautelares (interceptação telefônica, mandado de busca e apreensão, etc...).


Logo, não há como receber a denúncia pautada somente na lavratura de Termo Circunstanciado pela polícia militar (mesmo ambiental), eis que este procedimento é nulo, possuindo ineficácia jurídica, uma vez que produzido de forma contrário ao texto constitucional. Em circunstância análoga, assim foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão monocrática proferida pelo Ministro Luiz Fux, a saber (grifou-se): “RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE PERANTE O TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL. LEI ESTADUAL Nº 3.514/2010. POLÍCIA MILITAR. ELABORAÇÃO DE TERMO CIRCUNSTANCIADO. IMPOSSIBILIDADE. USURPAÇÃO DE COMPETÊNCIA. ATRIBUIÇÃO DA POLÍCIA JUDICIÁRIA – POLÍCIA CIVIL. PRECEDENTE. ADI Nº 3.614. INVIABILIDADE DO RECURSO EXTRAORDINÁRIO. 1. A repercussão geral pressupõe recurso admissível sob o crivo dos demais requisitos constitucionais e processuais de admissibilidade (art. 323 do RISTF). 2. Consectariamente, se o recurso é inadmissível por outro motivo, não há como se pretender seja reconhecida “a repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso” (art. 102, III, § 3º, da CF). 3. O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, ao julgar a ADI nº 3.614, que teve a Ministra Cármen como redatora para o acórdão, pacificou o entendimento segundo o qual a atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o Termo Circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar. 4. In casu, o acórdão recorrido assentou: ADIN. LEI ESTADUAL. LAVRATURA DE TERMO CIRCUNSTANCIADO DE OCORRÊNCIA. COMPETÊNCIA DA POLÍCIA CIVIL. ATRIBUIÇÃO À POLÍCIA MILITAR. DESVIO DE FUNÇÃO. OFENSA AOS ARTS. 115 E 116 DA CONSTITUIÇÃO ESTADUAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTES.- O dispositivo legal que atribui à Polícia Militar competência para confeccionar termos circunstanciado de ocorrência, nos termos do art. 69 da Lei nº 9.099/1995, invade a competência da Polícia Civil, prevista no art. 115 da Constituição do Estado do Amazonas, e se dissocia da competência atribuída à Polícia Militar constante do art. 116 da Carta Estadual, ambos redigidos de acordo com o art. 144, §§ 4º e 5º, da Constituição Federal. 5. O aresto recorrido não contrariou o entendimento desta Corte. 6. Recursos extraordinários a que se nega seguimento.”(Recurso Especial n. 702.617/AM. Relator: Ministro Luiz Fux. Julgado em 28/08/2012).


Nesse contexto, uma vez considerada a incompetência da Polícia Militar para a lavratura de Termo Circunstanciado, deve ser reconhecida, por via de consequência, a nulidade do ato expedido, porquanto constatado vício insanável. Como se sabe, tem-se como requisito de validade do ato administrativo a emissão por sujeito competente, não divergindo, seja doutrina, seja jurisprudência, nesse particular. Assim, necessária a desconstituição de todos os atos já praticados, porquanto "o reconhecimento, em juízo, da nulidade do ato (...) opera efeitos ex tunc"(STJ, REsp 293.840/RS), ou seja, retroage às suas origens. Assim, considerando a nulidade do Termo Circunstanciado lavrado por policiais militares, e que tal invalidade perpassa por todos os atos processuais subsequentes (efeito ex tunc), contaminando o feito de forma insanável (CPP, art. 573, § 1º), o abuso do Estado, por seus agentes deve ser reconhecido, tornando sem efeito qualquer consequência jurídica. Não é por acaso que Zaffaroni afirma que “a mais óbvia função dos juízes penais e do direito penal como planejamento das decisões judiciais é a contenção do poder punitivo. Sem a contenção jurídica (judicial) o poder punitivo ficaria liberado ao puro impulso das agências executivas e políticas e, por conseguinte, desapareceriam o estado de direito e a própria república”.[iv] É o que se espera do magistrado em nosso cenário democrático-constitucional, não se admitindo qualquer flexibilização da forma – que é garantia – sendo impensável que se exija demonstração de prejuízo para o acusado para caracterizar a existência de nulidade.[v]


É preciso abandonar a crença infundada na bondade do poder punitivo. A contenção do poder punitivo é uma exigência irrenunciável para a concretização do Estado Democrático de Direito. Cuida-se de colocar cada personagem do sistema penal em seu lugar respectivo, ou seja, no seu quadrado. É nesse sentido que o Estado Democrático de Direito deve ser compreendido como o que submete todos os habitantes à lei, em oposição ao Estado de polícia, no qual todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam.[vi] O desenho constitucional não pode ser modificado por conveniência e oportunidade, dado que o exercício de funções não previstas em lei e, no caso, em desconformidade com a Constituição da República, afeta a matriz do Estado Democrático de Direito. Aceitar o contrário seria reconhecer que todos os órgãos podem usurpar todas as funções e, assim, tornar sem sentido as distinções constitucionais. Cada um no seu quadrado é o comando constitucional. Quem não respeita, no afã puniendi, anula o que faz, mesmo que de boa-fé.


Alexandre Morais da Rosa é Doutor em Direito, Professor Universitário (UFSC e UNIVALI) e Juiz de Direito (TJSC).


Salah H. Khaled Jr. é Doutor e Mestre em Ciências Criminais (PUCRS) e Mestre em História (UFRGS). É Professor adjunto de Direito penal, Criminologia, Sistemas Processuais Penais e História das Ideias Jurídicas da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Professor Permanente do Mestrado em Direito e Justiça Social da Universidade Federal do Rio Grande – FURG.  Líder do Grupo de Pesquisa Hermenêutica e Ciências Criminais (FURG/CNPq). Autor de A Busca da Verdade no Processo Penal: Para Além da Ambição Inquisitorial, editora Atlas, 2013.
 
 
 
NOTAS

 [i] ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.52. Grifos do autor. p.53.

[ii] ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto de Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, pp 101-106.

[iii] BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005

[iv] ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.52. Grifos do autor. p.40.

[v] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013.

[vi] ZAFFARONI, Eugenio Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal Brasileiro – I. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p.41.

Foto: Rafael Alves/Fotos Públicas/ Tribunal de Justiça do Amazonas