PEC 443 pode garantir paridade de armas entre carreiras jurÃdicas
A Proposta de Emenda à Constituição 443, de 2009[1] traz uma singela mudança na Lei Maior, ao estabelecer um parâmetro mínimo para a remuneração, por subsídio, das carreiras da Advocacia Pública, da Defensoria Pública e das Polícias Judiciárias[2].
A PEC 443 não se resume apenas a uma questão remuneratória. Ela corrigirá omissões inconstitucionais que perduram por décadas e trará uma mudança de paradigma vista apenas em poucas ocasiões, desde que a Constituição de 1988 foi promulgada.
Poucos foram os órgãos que mereceram a atenção da Constituição. A magistratura, a advocacia pública, o Ministério Público e a Defensoria Pública estão entre esse seleto grupo. E isso não é desprovido de sentido, afinal a Constituição quis dar um tratamento nacional a essas categorias.
A Constituição trouxe regras que podem ser consideradas como o “estatuto constitucional da Advocacia Pública”. São elas: o artigo 5º, incisos XIII, parágrafo 2º; o artigo 37, inciso XI; o artigo 52, inciso II; o artigo 84, inciso XVI e parágrafo único; o artigo 93, inciso IX; o artigo 103, parágrafo 3º; o artigo 131, parágrafos 1º a 3º; o artigo 132, o artigo 133, o artigo 135, o artigo 165, parágrafo 9º, inciso III; o artigo 235, inciso VIII, todos da Constituição Federal, e artigo 29, parágrafos 1º à 5º, e artigo 69, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT).
A Advocacia-Geral da União, quando criada pela Constituição, representou a subtração da competência de assessorar e representar a União, que era realizada até então pelo Ministério Público Federal, que passou a atuar de forma independente, inclusive do Poder Executivo. A Advocacia-Geral da União, ao contrário, assumiu o papel de advogada de uma parte: o Estado brasileiro.
Segundo Gustavo Binenbojm[3], “essa imbricação lógica da Advocacia Pública com o Estado Democrático de Direito pode ser explicada teoricamente por uma vinculação das suas funções institucionais aos dois valores fundamentais de qualquer democracia constitucional. O primeiro deles, legitimidade democrática e governabilidade. O segundo deles, controle de legalidade ampla, que eu prefiro chamar de controle de juridicidade. Em primeiro lugar, vou abordar o compromisso democrático da Advocacia Pública. Esse compromisso atende à compreensão do nosso papel institucional em relação aos governantes eleitos. O Advogado Público não é um censor, não é um juiz administrativo, nem um Ministério Público interno à Administração Pública. O Advogado Público tem como uma das suas missões institucionais mais nobres e relevantes cuidar da viabilização jurídica de políticas públicas legítimas definidas pelos agentes políticos democraticamente eleitos. O Advogado Público tem o direito, como cidadão, de discordar dessas políticas. Eu diria que ele tem até o dever se esta for sua convicção pessoal. Todavia, ele tem o dever funcional de se engajar na promoção e na preservação dessas políticas, desde que elas se mantenham dentro dos marcos da Constituição e das leis em vigor”.
Os Advogados Públicos tornaram-se, assim, não apenas advogados do ente público, mas advogados do Estado Democrático de Direito que exercem funções essenciais a dois Poderes da República: à Justiça e à Administração Pública.
O compromisso democrático da Advocacia Pública é importante para ressaltar a relevância e urgência da PEC 443, de 2009, afastar qualquer pecha de inconstitucionalidade que se queira colocar sobre seu texto.
Quando o texto diz que o subsídio do grau ou nível máximo das carreiras da Advocacia-Geral da União corresponderá a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal, escalonando as demais categorias da Advocacia Pública a partir dele, ele não está afrontando o artigo 37, inciso XIII, da CF que estabelece ser “vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público”.
Em primeiro lugar, não há uma equiparação exata entre os subsídios das carreiras do Poder Judiciário ou do Ministério Público da União, pois o percentual de 90,25% se aproximaria da categoria intermediária dessas carreiras[4], conforme definido em lei.
Outrossim, é preciso lembrar que a proibição de equiparação remuneratória entre categorias é dirigida ao legislador ordinário. No texto constitucional, ao contrário, há inúmeras regras que parametrizam órgãos de diferentes, a exemplo do artigo 73, parágrafo 3º, da CF, que parametriza o TCU ao STJ (órgãos do Poder Legislativo e Judiciário) ou do artigo 29, inciso VI, da CF, que trata de Vereadores e Prefeitos (cargos do Poder Legislativo e Executivo).
Esta autorização constitucional ocorreu em diversos momentos de nossa história, a exemplo das propostas que resultaram na EC 19/98, da EC 45/2004 ou das recentes EC 87/2015 e 88/2015.[5].
A chamada simetria constitucional dos subsídios entre o Poder Judiciário e o Ministério Público, por seu turno, é feita pela legislação infraconstitucional, pois o texto da CF se resumiu a dizer, no seu artigo 129, paragrafo 4º, da CF que “aplica-se ao Ministério Público, no que couber, o disposto no art. 93” (texto dado pela EC nº 45/2004), ao passo que o artigo 134, parágrafo 4º, reza que “são princípios institucionais da Defensoria Pública a unidade, a indivisibilidade e a independência funcional, aplicando-se também, no que couber, o disposto no artigo 93 e no inciso II do art. 96 desta Constituição Federal” (texto dado pela EC 80/2014)[6].
A PEC 443, de 2009, portanto, não viola o artigo 37, XIII da CF (até porque o parâmetro de controle das Propostas de Emenda à Constituição são as cláusulas pétreas) e, ainda por cima, respeita a tradição constitucional brasileira, ao reconhecer a necessidade de dar uma paridade de armas entre órgãos de Poderes diferentes, de modo a lhes assegurar a harmonia e independência.
A separação de Poderes, que é uma cláusula pétrea invocada sem muita densidade argumentativa, também não pode ser usada contra a PEC 443, de 2009.
Com efeito, no julgamento da ADI 1.949/RS, o STF traçou algumas linhas sobre o âmbito de proteção da garantia de separação dos Poderes, indicando qual o limite das leis e do texto constitucional. Segundo a decisão, “o voluntarismo do legislador infraconstitucional não está apto a criar ou ampliar os campos de intersecção entres os poderes estatais constituídos sem autorização constitucional”.
Esta autorização constitucional ocorreu em diversos momentos de nossa história, a exemplo das propostas que resultaram na EC 19/98, da EC 45/2004 ou das recentes emendas constitucionais 87/2015 e 88/2015. No caso da Advocacia Pública, a autorização constitucional para a parametrização do subsídio com outras carreiras jurídicas federais virá no texto da PEC 443, que tem aplicabilidade imediata e eficácia diferida no tempo, conforme cronograma trazido nos artigos finais da Proposta[7].
O fato de não depender de lei própria para fixar o subsídio da advocacia pública, além de não afrontar a cláusula pétrea da separação de Poderes, também não viola o princípio da legalidade, que é uma garantia fundamental. Na verdade, ocorrerá com a Advocacia Pública Federal exatamente o que se observa nas carreiras do Poder Judiciário e do Ministério Público dos Estados-Membros, cujo subsídio deixou de ser fixado por lei estadual, mas se parametrizou a partir da lei federal, conforme decisões proferidas no Pedido de Providências 0.00.000.001770/2014-83 pelo CNMP[8], bem como no Pedido de Providências 0006845-87.2014.2.00.0000 no CNJ, que foram cumpridas por todos os Estados.
No caso específico dos advogados públicos, há ainda um argumento favorável: subsídio deixará de ser fixado por lei ordinária, passando a ser tratado pela Lei Maior.
Mais uma vez, não há nenhuma novidade, tampouco inconstitucionalidade, na Proposta de Emenda à Constituição nº 443, de 2009, que só não vem em bora hora, pois chegou tarde. Sua aprovação é, cada vez mais, urgente e indispensável.
Com efeito, o Brasil precisa de sistemas e instituições saudáveis. A Advocacia-Geral da União e seus órgãos vinculados, não obstante seus expressivos resultados, está longe disso. A carreira de Procurador Federal, que chegou a atrair magistrados estaduais e promotores de justiça para seus quadros, hoje amarga a evasão constante de seus quadros, o que inegavelmente tem reflexos sobre os bens, serviços e interesses da União, de suas autarquias e fundações, cuja representação judicial, consultoria e assessoramento cabem aos Advogados Públicos (artigo 131 da CF c/c artigo 29 do ADCT).
Segundo as conclusões do Grupo de Trabalho sobre as carreiras da AGU, o “GT-carreiras” criado pela Portaria 157/2012, havia, no final de 2012, cerca de 1.600 cargos vagos em todos os órgãos da Advocacia-Geral da União (PGF, PGFN, PGU e PGBacen).
No 1º Diagnóstico do Ministério da Justiça sobre a Advocacia Pública Federal, outros números perturbadores: “37% dos Advogados Públicos Federais que responderam ao questionário afirmaram que pretendem prestar concurso para outra Carreira, sendo que 65,1% demonstraram interesse em seguir a carreira da Magistratura Federal e 57,8% a carreira do Ministério Público Federal”[9]. Em outras palavras, praticamente metade dos integrantes da carreira pretende deixá-la.
As entidades representativas da categoria já apontavam, desde aquela ocasião[10], que há outro número que não aparece nessas estatísticas e se refere aqueles que passam na seleção para o órgão, mas não tomam posse. Cerca de 20% dos aprovados desistem de assumir o cargo porque, até a posse, já passaram em outro concurso mais vantajoso. No decorrer dos dois anos seguintes, mais 20% deles desistem de continuar. Isso significa que, entre aprovados e os recém-nomeados, a desistência chega a 40% em dois anos.
Levando em consideração os números do início desse ano, dos 610 nomeados para o cargo de procurador federal no concurso de 2005 (homologado pela Portaria 578/2006) apenas 373 permanecem na carreira. No concurso de 2007 (PT 1.529/2007, retificada pela PT 153/2008) dentre os 942 nomeados, 683 permanecem na carreira. No concurso de 2010 (PT 2.053/2010, retificada pela PT nº 286/2011), dentre os 305 nomeados, tão somente 218 permanecem na Advocacia Pública Federal. Na data do ajuizamento desta ação, os números certamente já serão maiores.
Conforme dados da própria Advocacia-Geral da União, existem 4.362 vagas de procurador federal, número que representa a lotação ideal da Procuradoria-Geral Federal. Ou seja, o número de vagas minimamente necessárias para representar de forma eficaz o interesse público na representação judicial e extrajudicial das autarquias e fundações públicas federais. Todavia, no mês de março de 2015, existiam apenas 3.748 procuradores federais lotados na PGF, ou seja, existem aproximadamente de 500 vagas abertas na carreira, sem contar as vagas devidamente preenchidas, mas cujo exercício não está sendo prestado pelo titular, em razão de licenças ou demais afastamentos permitidos por lei.
Tais números demonstram a deterioração das condições de trabalho dos advogados públicos, bem como a necessidade de aprovação a PEC 443, de 2009, que amenizará o problema. Por outro lado, esse mesmo quadro demonstra que não é mais possível encarar uma das instituições mais importantes da República, como a Advocacia-Geral da União, como uma realidade estanque.
Por exercerem funções igualmente essenciais à Justiça, as leis sobre os subsídios e a estrutura da magistratura, Ministério Público, Defensoria e Advocacia Pública repercutem reciprocamente entre si, conforme reconheceu, ainda que indiretamente, o Procurador-Geral da República, na ADI 5.017/DF, quando registrou que, “tendo em vista que a criação de TRFs acarreta a mudança da lotação desses agentes públicos [os procuradores federais] e alteração da própria estrutura física de seus órgãos, o ato normativo objeto desta ação, no entender da autora – e desta Procuradoria-Geral da República – afeta diretamente interesses comuns (...)”.
Na decisão proferida na ação, o Ministro Joaquim Barbosa destacou essa relação referencial, quando pontuou que “a criação dos novos tribunais projetará uma série de expectativas para a magistratura, para a União, para a advocacia pública, para a advocacia privada ate para os jurisdicionados”.
A realidade própria das carreiras jurídicas da União, diante da qual seus membros migram de umas para outra, com destaque à evasão das carreiras da Advocacia-Geral da União para as demais, não pode mais ser ignorada, sob pena de se perpetuar o impacto desproporcional sobre a Advocacia Pública[11].
A flagrante omissão legislativa, em concretizar a paridade de armas dos advogados públicos com os demais está prestes a mudar. E um dos primeiros passos para essa revolução copernicana se concretizar, será dado a partir da aprovação da PEC 443, de 2009.
[1] O texto original da Proposta prescreve que “o subsídio do grau ou nível máximo das carreiras da Advocacia-Geral da União, das Procuradorias dos Estados e do Distrito Federal corresponderá a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal, e os subsídios dos demais integrantes das respectivas categorias da estrutura da advocacia pública serão fixados em lei e escalonados, não podendo a diferença entre um e outro ser superior a dez por centro ou inferior a cinco por cento, nem exceder a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal, obedecido, em qualquer caso, o disposto nos artigos 37, XI, e 39, parágrafo 4º”. Na votação em Plenário, é possível votar, mediante destaque, o texto original, conforme previsão no artigo 161, IV do RICD.
[2] O cargo de Delegado do Departamento de Polícia Federal também exerce atividade de natureza jurídica, conforme art. 1° da Lei n° 13.047/2014.
[3] BINENBOJM, Gustavo. Estudos de direito público. Rio de Janeiro: Renovar, 2015, p. 580
[4] A categoria mais elevada das carreiras do Ministério Público da União, o cargo de Subprocurador geral, percebe 95% do subsídio fixado como teto constitucional, na forma da lei. Na Advocacia Pública, se aprovado o texto da PEC n° 443, de 2009, esse percentual será de 90,25%, colocando a categoria final das carreiras de advogados públicos emparelhada com o cargo intermediário, o de Procurador Regional, que percebe 90% do subsídio do STF.
[5] Esse dado é importante, pois indica que as regras incorporadas à Constituição sobre o Tribunal de Contas da União e Câmara de Vereadores, que guardam, em certa medida, semelhança com o texto da PEC nº 443, de 2009, são constitucionais e plenamente eficazes, sendo que nem mesmo o passar do tempo implicou a chamada inconstitucionalidade progressiva.
[6] Note-se que, embora a equiparação da Defensoria Pública ainda careça de efetividade, o texto em vigor da Constituição lhe foi mais generoso do que foi com o Ministério Público no que se refere ao princípio da simetria constitucional. E, em ambos os casos, a redação atual foi dada por uma Proposta de Emenda à Constituição.
[7] A PEC nº 465, de 2010, será submetida a Plenário ao mesmo tempo da PEC nº 443, de 2009, por força do artigo 105 do RICD, em conformidade com o despacho exarado no REQ-356/2015. A peculiaridade da PEC nº 465 é que ela trata apenas de carreiras federais – a Advocacia-Geral da União e a Defensoria Pública da União – e tem eficácia imediata, pois não há condicionamento temporal para que produza efeitos, na medida em que estabelece que o “subsídio do grau ou nível máximo das carreiras disciplinadas nas Seções II e III deste Capítulo corresponderá a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, fixado para os Ministros do Supremo Tribunal Federal”. Por outro lado, as categorias inicial e intermediária dependerão de lei, que terá a liberdade de estabelecer a diferença entre os degraus da carreira entre 5% e 10%. A desvantagem da PEC nº 465, de 2010, é repetir omissões inconstitucionais, a exemplo daquela provocada pelo Decreto-legislativo nº 805/2010, que foi combatida no Mandado de Injunção nº 4312/2011 impetrado pela UNAFE, que deve resultar no pagamento de valores atrasados, caso acolhida a argumentação da entidade.