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O ciclo completo não é da polícia

Crédito @fotolia/jotajornalismo

 

Por Marcos Leôncio Ribeiro
Presidente da Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal

 

Os episódios de violência noticiados diariamente no país, associados à sensação de impunidade e à eleição de uma bancada parlamentar oriunda de órgãos policiais, elevou o tema da segurança pública ao patamar de assunto em destaque na nova legislatura do Congresso Nacional com a tramitação de diversas proposições legislativas sobre a reforma constitucional das polícias brasileiras por intermédio de variados modelos, tais como ciclo completo, unificação e desmilitarização.

 

A meu ver, porém, essa discussão já se inicia de maneira equivocada. Ela reduz de forma simplista a solução da segurança pública no Brasil a uma mera reforma policial. Reforma que, por sua vez, é debatida a partir de embates entre as carreiras policiais e até entre as suas corporações, tendo como referencial a importação pura e simples de modelos policiais estrangeiros, sem considerar a realidade nacional e o que é melhor para a sociedade e o Estado brasileiro. Isso, infelizmente, não chega a ser uma novidade no Brasil.

 

Em outubro próximo, o parágrafo 7º do art. 144 da Constituição Federal que dispõe "A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades" irá completar 27 anos sem efetivação da desejada integração das forças policiais no denominado Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Ao longo dessas duas décadas, a vontade do constituinte de 1988 foi sistematicamente boicotada pelas corporações e carreiras policiais que, diante da omissão do Estado e de seus governantes, recusam­se a atuar de maneira integrada, sistêmica e eficiente. As forças policiais deixam de ser forças do Estado, a serviço da sociedade, para se tornarem forças a serviço de interesses corporativos.

 

O ciclo completo — hoje tão defendido, sobretudo pela Polícia Militar, como contraponto à atuação da Polícia Civil nos estados — nada tem a ver com o ciclo completo concebido pelo constituinte de 1988 para a organização e o funcionamento do Estado na forma de um sistema unificado, integrado e eficiente de todos os órgãos públicos envolvidos direta ou indiretamente com a segurança pública.

 

Para melhor compreensão, imaginemos o sistema de segurança pública e justiça estabelecido na ordem constitucional vigente como um trem do metrô transitando por várias estações. A primeira delas, denominada "prevenção", é seguida por outras, na área do trabalho policial: a "ostensividade" e a "investigação". Na sequência, na seara judicial, vêm a "acusação", a "defesa" e o "julgamento". E, já no âmbito prisional, as duas últimas: a "execução penal" e a "ressocialização".

 

Ocorre, porém, que essa linha de metrô se caracterizou nos últimos 27 anos (por falta de gestão e investimento público) como uma via sem integração entre as suas estações e, portanto, com o ciclo completo ineficiente. Por tudo isso, a sensação do cidadão usuário desse sistema é de insegurança e impunidade.


Infelizmente, ao invés de gestão integrada como solução para o cidadão, o quadro tende a se agravar com a fragmentação das forças policiais e a transformação das mesmas em verdadeiros "feudos corporativos".

 

A sociedade brasileira assiste a um assustador fenômeno de "policialização" das instituições. O rol de órgãos de segurança pública, que teimam em não agir de maneira integrada e eficiente, tende a ser alargado cada vez mais. Nos últimos anos, verificaram­ se correntes em favor da criação de novas "polícias" entre os órgãos periciais, penitenciários, de segurança viária, aduaneiros, guardas municipais e portuários.

 

Tal fenômeno está vinculado, ainda, à usurpação de funções e ao conflito de atribuições entre essas instituições. Tornou­-se uma prática comum no Brasil que órgãos públicos deixem de realizar as suas atividades previstas em lei para executar ou impedir o trabalho dos demais. Exemplificando, a polícia legislativa entende que, além da segurança orgânica, as investigações de polícia judiciária no parlamento são de sua competência exclusiva. O Ministério Público atua na investigação criminal como "polícia" por intermédio de sua unidade própria, o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (GAECO). São corriqueiros os atritos de guardas municipais e agentes de trânsito com policiais militares e desses com policiais civis. E entre as polícias federais, pois a polícia rodoviária federal quer atuar também como polícia judiciária da União.

 

É nesse contexto que o Congresso Nacional deverá debater, com duas décadas de atraso, uma espécie de pacto federativo para inserir de maneira integrada e eficiente a segurança pública entre as competências comuns da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

 

Na contramão dessa iniciativa de promover uma discussão da segurança pública enquanto política de Estado, outros projetos legislativos em tramitação buscam um debate com o viés apenas corporativo.

 

Por exemplo, a bancada parlamentar vinculada à polícia militar quer o "ciclo completo policial" para executar trabalho preventivo, ostensivo e investigativo. Todavia, não quer debater a sua desmilitarização nem tampouco a sua unificação com as polícias civis estaduais. Igualmente, resiste ao ciclo completo para as guardas municipais e os agentes prisionais e de segurança viária.

 

Cabe aqui salientar a diferença entre polícia militarizada e polícia fardada. É condição indispensável para autorizar a investigação formal de um civil por militar, no Estado Democrático de Direito, que isso se faça com paridade de tratamento quanto ao regime jurídico penal e processual penal. Assim sendo, a investigação de civil pela Polícia Militar passa necessariamente pela discussão da aplicação do código penal militar, do código de processo penal militar e da própria Justiça Militar apenas nas hipóteses em que a Polícia Militar atuar no seu papel constitucional de auxiliar das Forças Armadas. Fora disso, esse policial fardado que quer investigar deve se submeter ao mesmo regime do cidadão a quem deseja investigar.
Os defensores do "ciclo completo" na Polícia Militar argumentam que é contraproducente separar o trabalho investigativo da atividade preventiva e ostensiva. Contudo, em lugar de defenderem a reunião do trabalho policial numa polícia estadual unificada, fomentam ainda mais a disputa institucional por meio de uma espécie de concorrência entre as forças policiais.

 

Urge esclarecer que a constituição cidadã de 1988 teve a preocupação de desenhar um sistema único de segurança pública e justiça cuja integração e eficiência deveria respeitar a separação de atividades entre as instituições e órgãos públicos como forma de prevenir a concentração, excessos e abusos do poder estatal.

 

Eis por que a Polícia Militar conduz o preso civil até a delegacia de Polícia Judiciária, que, por sua vez, não deve ser custódia de presos, mas órgão de investigação sob o controle externo do Ministério Público para levar o investigado, na forma da lei, ao juiz que decidirá se ele vai ou não para o sistema prisional, cuja fiscalização da execução penal compete ao Ministério Público e ao Judiciário. Essa cadeia de garantias é a essência do modelo acusatório de divisão de tarefas como cautela ao poder do Estado frente ao cidadão.

 

Como justificativa para o "ciclo completo" na Polícia Militar brasileira é costume exemplificar o modelo policial adotado no Chile e Portugal, países com a forma de Estado unitário típica entre as nações com reduzida dimensão geográfica, deixando de considerar as peculiaridades da forma federativa escolhida pelo Brasil continental, que foi fortemente influenciado pelos Estados Unidos, mas dele também se distingue.

 

Os Estados Unidos optaram por modelo de multiplicidade de agências de segurança pública especializadas por matéria e de órgãos policiais conforme a base territorial. Ocorre que há relevantes diferenças entre a autonomia dos estados­membros no federalismo dos Estados Unidos e a dos estados no federalismo do Brasil. Só para ilustrar, o Brasil há tempos abandonou o modelo em que cada estado­membro poderia ter o seu respectivo código penal e código de processo penal e estabeleceu a competência legislativa privativa da União sobre direito penal e processual penal.

 

Embora pessoalmente aprove a especialização dos órgãos de segurança pública com base na expertise da matéria e na especialidade da atuação profissional, particularmente me preocupa a adoção do modelo de multiagências no Brasil diante da ausência de marco regulatório nacional que discipline a organização e o funcionamento integrado dos órgãos responsáveis pela segurança pública no país, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades. É fato público e notório a resistência cultural por parte do profissional de segurança pública brasileiro em observar os protocolos de ação conjunta e integrada, sobretudo entre as forças policiais.


 

Em síntese, o ciclo completo se confunde com o próprio sistema único de segurança pública preconizado pela Constituição Federal de 1988. Ele deve ser, portanto, discutido no campo da própria organização federativa do Estado brasileiro. Não é tema para ser monopólio das carreiras policiais. As diretrizes nessa discussão devem ser a integração, a cooperação e a eficiência sistêmica em favor da sociedade brasileira".