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Delegados relevantes e lesões insignificantes

A legitimidade do reconhecimento da falta de tipicidade material pela autoridade policial.

 

 

Causou perplexidade a recente notícia veiculada pela imprensa paranaense: Judiciário e MP enviaram à Corregedoria da Polícia 30 pedidos de processos disciplinares contra seis delegados que teriam extrapolado suas prerrogativas, reconhecendo o princípio da insignificância. (veja aqui).

 

De acordo com a Associação dos Delegados do Paraná (ADEPOL), a perseguição de setores do Judiciário e do MP teria começado cerca de quatro meses atrás, resultando em relutância por parte dos Delegados em reconhecer a atipicidade de fatos pela inexistência de tipicidade material, a saber, a intimação das perseguições busca impedir que se continuem as práticas. Os resultados são bastante previsíveis, como demonstrado no fragmento da reportagem abaixo:

 

No fim de outubro, a reportagem visitou a carceragem de um distrito de Curitiba. Dos 18 presos, 16 haviam sido detidos por delitos considerados leves. Entre eles, um rapaz loiro, que olhava assustado por detrás da grade. Havia furtado um salgadinho e um refrigerante em uma padaria no Boqueirão. “Eu tava com fome, senhor”, justificou. “Por mim, soltava todos. O que o Estado vai gastar para mantê-los presos e para instaurar o inquérito custa mais do que o produto que furtaram”, disse um delegado que pediu para não ser identificado.

 

Claramente o que está em discussão aqui não é propriamente a aplicabilidade do princípio no ordenamento jurídico brasileiro (o que inclusive já foi aceito pelo próprio STF, que definiu os critérios de aplicabilidade, embora insustentáveis teoricamente, no julgamento do HC 84.412/SP), mas sim a possibilidade de reconhecimento da atipicidade material de um dado fato pelos delegados de polícia. Afinal, podem ou não podem levar em conta o princípio da insignificância, tanto no que se refere a prisão em flagrante quanto a própria instauração do inquérito policial?

 

A questão passa pela (re)definição do papel reservado aos Delegados, que deve ser condizente com as diretrizes constitucionais. Em outra oportunidade fizemos discussão semelhante ao tratarmos da lavratura de termo circunstanciado por policial militar e apontamos: cada um no seu quadrado (veja aqui).

 

De fato, a sobreposição de funções e a confusão de papéis é nociva ao Estado Democrático de Direito. Mas certamente não é disso que se trata aqui. Os Delegados não estão de modo algum reivindicando função que não é sua. Pelo contrário: como no Brasil a investigação preliminar é chefiada pela autoridade policial, cabe a ela a dimensão de controle e de garantia de preservação dos direitos fundamentais do sujeito passivo da investigação, como aponta André Nicolitt[i]. Sem falar que estamos falando aqui de um visível emprego racional dos recursos escassos de que a autoridade policial possui para fazer seu trabalho.  Não só os Delegados podem como DEVEM analisar os casos de acordo com o princípio da insignificância. Merecem aplauso e incentivo os Delegados que agem dessa forma, pois estão cientes do papel que lhes cabe na investigação preliminar, atuando como filtros de contenção da irracionalidade potencial do sistema penal.

 

Em outras palavras, deve o Delegado desempenhar papel condizente com a estrutura racional-legal de contenção do poder punitivo e para tanto, é natural que disponha de atribuição para fazer os juízos necessários ao sentido apropriado da tipicidade no marco contemporâneo: se o fato é atípico, não pode ensejar persecução penal e manutenção do indivíduo preso em flagrante em função de situação insignificante. E não basta ser formalmente típico. É preciso ser materialmente típico. Pensar o contrário é manter a postura de desconfiança para com a classe e, no fundo, sustentar uma qualidade melhor e hierarquicamente do Poder Judiciário (Juiz e Ministério Público).

 

A insistência para que seja mantido preso o cidadão enquanto se aguarda decisão judicial, sob o argumento de que os Delegados fazem algo para o qual não tem poder legal carece de sentido democrático. Todos sabem que o Judiciário deve ser comunicado em 24 horas, que a prisão pode ser relaxada, convertida em preventiva (!), em liberdade provisória ou uma fiança ser arbitrada. Mas as pessoas referidas na reportagem (aparentemente responsáveis por furtos ou tentativas de furto de bermudas, par de chinelos, xampu e um hambúrguer) disseram estar presas na cela há dias, situação que infelizmente não é tão incomum como se imagina.

 

O Corregedor-chefe da Polícia Civil informou que os Delegados têm instaurado o inquérito policial como manda a lei, mesmo que soltem o acusado. Nenhum processo disciplinar foi movido contra Delegados e ela acredita que a tendência é pelo arquivamento. Registrar a ocorrência e depois os demais sujeitos do processo poderão intervir.

 

Mas é preciso ainda mais ousadia por parte da autoridade policial: o fato é que pode ser desenvolvida com enorme facilidade argumentação no sentido de que a atipicidade deve obstaculizar a instauração do próprio inquérito policial, para que o custo de situações irrelevantes penalmente não precise movimentar a máquina do Poder Judiciário e, com isso, ocupar a pauta do STF, órgão que deveria tratar de questões mais relevantes. Não se trata de mera extinção da punibilidade, mas de inexistência de tipicidade. Não existindo tipicidade material o fato é atípico e não há justa causa para instauração da ação penal. Não é por acaso que Lopes Jr e Gloeckner apontam que “a função de evitar acusações infundadas é o principal fundamento da investigação preliminar”.[ii] São questões que podem ser tratadas em outros âmbitos do Direito que não o Penal.

 

Tudo parece remeter aos velhos exemplos de sala de aula que trazemos para os alunos datenizados: um furto de laranja na feira não tem (ou não deve ter) o condão de movimentar o sistema penal. Não é incomum que alunos perplexos digam que o professor apenas diz isso porque não é feirante e não teve a sua laranja furtada. Tudo parece remeter a uma crença infundada na prevenção geral negativa e uma incapacidade para a compreensão do lugar apropriado o Direito Penal no contexto contemporâneo do Estado Democrático de Direito: a maximização dos espaços de controle e contenção da arbitrariedade (ver artigo aqui). E para isso, não interessa reafirmar qualquer lugar de autoridade: interessa é obstaculizar a irracionalidade e para isso, os Delegados devem ser a primeira barreira. Não faz sentido investirmos recursos (dinheiro) e tempo (que poderia ser investido em questões relevantes) na averiguação de questões sem lesividade, nem relevância democrática, como o furto de uma boneca barbie (veja aqui). O documentário “Bagatela” explicaria muito (veja).

 

Precisamos amadurecer e deixar de conduzir ao Supremo situações como as relatadas no voto de Celso de Mello, abaixo disponível.  Pelo menos é o que nós pensamos e, ao contrário de muitos, confiamos na capacidade hermenêutica-constitucional dos Delegados de Polícia, os quais precisam ser reconhecidos e respeitados. Abraços!

 

Acórdão de Ministro Celso Mello no HC nº 98.152/MG

 

 

 

Por Salah H. Khaled Jr. e Alexandre Morais da Rosa

Fonte: Justificando.com