Medidas protetivas
Lei Maria da Penha ainda não está sendo aplicada devidamente
Têm sido objeto de polêmica os projetos da Câmara dos Deputados PL 6.433/2013 e PL 7.376/2014 que propõem alterações na Lei 11.340/96 — Lei Maria da Penha. O primeiro pretende dar mais efetividade à proteção da vítima de violência doméstica, ao facultar à autoridade policial aplicar de imediato, em ato fundamentado, as medidas protetivas de urgência, comunicando em seguida ao Ministério Público e ao juiz competente, que poderá mantê-las ou revê-las; propõe ainda o referido PL que a autoridade policial (no caso, o delegado) deverá ter acesso às informações referentes aos processos judiciais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, inclusive fora do horário de expediente forense, a fim de verificar a existência de medidas protetivas, as condições aplicadas e informações necessárias à efetiva proteção da vítima em situação de violência. O segundo projeto — PL 7.376/2014 — tipifica como crime o descumprimento de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha.
Saliente-se que as medidas protetivas de urgência são de grande relevância na proteção dos direitos de mulheres, vítimas de violência doméstica, mas seu descumprimento apenas acarreta as previstas no artigo 22, parágrafos 3º e 4º e no Código de Processo Penal — vale dizer, auxílio de força policial, multa civil e prisão preventiva, visto não ter o legislador disposto expressamente sobre o crime de desobediência. Esse tem sido o reiterado entendimento de vários tribunais na hipótese de descumprimento da ordem judicial relativa à medida de urgência.
Com efeito, nas turmas criminais do Superior Tribunal de Justiça, isso vem sendo consolidado no sentido de que há atipicidade da conduta, não se configurando crime de desobediência visto que, no dizer do próprio STJ “a previsão em lei de penalidade administrativa ou civil para a hipótese de desobediência à ordem legal afasta o crime previsto no art. 330 do Código Penal, salvo ressalva expressa de cumulação, inexistente no caso” ( HC 285620 / RS - 2013/0420568-1 T5 - Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE j.07/08/2014 p. 15/08/2014).
Para afastar este entendimento reiterado[1] de tribunais brasileiros, urge tipificar o crime de descumprimento de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha, como propõe o PL 7.376/2014, ou incluir ressalva expressa em parágrafo do próprio artigo 22 da Lei Maria da Penha, no sentido da aplicação cumulativa das penas do delito de desobediência.
Por outro lado, não podem continuar a prosperar aqueles argumentos tão repetitivos de que se deve aplicar nessa matéria o respeito ao princípio da intervenção mínima do Direito Penal. Este argumento demonstra que ainda o Estado brasileiro não tomou plena consciência deste mal que assola insidiosamente a família, pois cuida-se, sim, de grave problema que vem afetando a sociedade brasileira de maneira dramática.
Os números, dados e pesquisas mostram a grave dimensão do problema: o Brasil ocupa a sétima posição em feminicídios, no contexto dos 84 países do mundo com dados homogêneos da OMS compreendidos entre 2006 e 2010; e, segundo o Mapa da Violência 2012[2], vemos que em todas as faixas etárias, a relação doméstica é o que decididamente prepondera nas situações de violência vividas pelas mulheres. Vale lembrar que, nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil só na última década. O número de mortes nesse último período representa um aumento maior de 200%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de assassinato no país (Fonte: SIM/SVS/MS). Por outro lado, estudos mostram que o percentual de reincidência nas violências contra a mulher é extremamente elevada, principalmente a partir dos 30 anos de idade das vítimas, o que está a configurar um tipo de “violência anunciada” e previsível que não é erradicada.
Constata-se que esses projetos de lei buscam a necessária efetividade e celeridade quando em risco um bem jurídico maior a ser tutelado: a vida e integridade da saúde de mulheres, vítimas diuturnas do formalismo estéril de muitas de nossas instituições jurídicas, que se comprazem em “espiolhar” inconstitucionalidades, como se deu nos primeiros tempos da vigência da Lei Maria da Penha, em que a polêmica inicial sobre suas inúmeras inconstitucionalidades só foi superada com o julgamento pelo STF da ADC 19 e da ADI 4.424, quando os ministros consideraram que todos os artigos da lei que vinham “tendo interpretações divergentes nas primeira e segunda instâncias estavam de acordo com o princípio fundamental de respeito à dignidade humana, sendo instrumento de mitigação de uma realidade de discriminação social e cultural”.
A sujeição, discriminação e violência de milênios não se superam com facilidade. A abordagem da questão da violência nas relações domésticas como um fenômeno social que exige ações públicas enfrenta diversas resistências. Sem dúvida, “naturalizou-se” a violência contra a mulher. Primeiramente é importante considerar a ideia, ainda presente em nossa cultura, de que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”. Além disso, ainda persistem compreensões limitadas na conceituação “das violências”: que tipos de comportamentos cada um dos parceiros nomeia como “violência”? O que os “outros” entendem como “violência”? Qual o seu limite em uma relação familiar?
É urgente desconstruir mitos e estereótipos que ainda permeiam a nossa sociedade, inclusive entre os operadores de direito. Vale observar que negligências e omissões das instituições, muitas vezes são justificadas com base nesses mitos. Ressalte-se ainda a legitimação das agressões que, muitas vezes, são atribuídas ao comportamento provocativo e sedutor da mulher. Todos nós conhecemos frases do tipo “mereceu o abuso”; “você não sabia que ele era assim?”; “isso é normal”, “foi assim também comigo e eu suportei, pois Deus é mais”. Precisamos entender que mitos geram distorções, silêncios e preconceitos...
Alguns desafios precisam ser superados para a efetivação do enfrentamento à violência de gênero, por exemplo, a dificuldade e instabilidade das mulheres, em situação de violência, para denunciar e manter a denúncia; a incompreensão e a resistência dos agentes sociais responsáveis pelos atendimentos e encaminhamentos; a falta de apoio efetivo para as mulheres em situação de violência, no âmbito privado e público; a falta de programa de atendimento ao homem autor da agressão, com medidas eficazes de intervenção socioterapêuticas.
Sem dúvida, faltam políticas públicas — a Lei Maria da Penha não está sendo aplicada devidamente, pois, de seu texto resulta claro que a violência doméstica contra a mulher não pode ser tratada apenas como problema de justiça criminal, pois é uma questão de múltiplas dimensões[3]. É preciso sempre repetir: as leis não bastam.
Entretanto, essa violência doméstica que, durante séculos, o espaço da casa privatizou, não pode ser ignorada pelo estado. Essas mortes anunciadas em vários pontos do Brasil, dão uma medida do que vem ocorrendo: são necessárias medidas eficazes para o enfrentamento adequado, inclusive de natureza penal, se necessárias. É urgente agilizar e garantir a eficácia das medidas protetivas. O Brasil ratificou a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher (CEDAW)[4] e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher — Convenção de Belém do Pará[5] —, incluindo tais preceitos em seu ordenamento jurídico. Esta última Convenção, em seu artigo 7º estabelece que os Estados-Partes condenem todas as formas de violência contra a mulher e concordem em adotar, por todos os meios apropriados e sem demora, políticas orientadas a prevenir, punir e erradicar a dita violência e empenhar-se em “incluir em sua legislação interna normas penais, civis e administrativas, assim como as de outra natureza que sejam necessárias para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher”, entre outras medidas.
Acrescente-se que a CF, em seu artigo 226, parágrafo 8º, estabelece que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.
É preciso ter sempre presente que as intervenções do estado precisam ir muito além da responsabilização criminal do autor, enfatizando-se o exercício da cidadania das mulheres, as possibilidades de acesso à rede de serviços e à Justiça, buscando-se a implementação de ações educativas de prevenção, o fortalecimento das redes de atendimento e a capacitação de seus profissionais.
Entretanto, há de se buscar alternativas para que a efetivação plena da Lei Maria da Penha e, quando necessário, seu aprimoramento, com mecanismos que possam enfrentar a violência presente no cotidiano de milhares de mulheres brasileiras garantindo o estado, de modo eficaz, um bem jurídico altamente relevante: a vida e a integridade da saúde dessas vítimas, que continuam a morrer, muitas vezes, com a medida protetiva de urgência reduzida a um “mero pedaço de papel”.
[1] Dentre inúmeras decisões: STJ - AgRg no HC 292730 RS 2014/0086551-1; publicação: 05/06/2014; REsp 1477714/ 2014/0218656-0- j.23/10/2014; HC 298138 / RS HABEAS CORPUS 2014/0159212-3 (Processo T5 - QUINTA TURMA J.06/11/2014)
[2] Mapa da Violência 2012 Atualização: Homicídio de Mulheres no Brasil ; Coordenação: Julio Jacobo Waiselfisz- Centro Brasileiro de Estudos Latino--Americanos (CEBELA)/ Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais(FLACSO)-Brasil).
[3] Fixa a lei normas diretivas de políticas públicas em três eixos básicos: Proteção e assistência; Prevenção e educação; Combate e Responsabilização. Prevê a lei medidas multidisciplinares, com a adoção de políticas públicas necessárias para prevenir a violência contra as mulheres como ações educativas e culturais que interfiram nos padrões sexistas (educação como caminho indispensável para mudar comportamentos); planejamento adequado das ações, com base em dados e pesquisas ordenadas e racionais; Capacitação de profissionais envolvidos com a temática; assistência à mulher e à família em situação de violência e programas de intervenções socioterapêuticas em relação ao autor da agressão.
[4] A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW - Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women) foi aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas através da Resolução 34/180, em 18 de dezembro de 1979. Foi assinada pelo Brasil, com reservas na parte relativa à família, em 31 de março de 1981, e ratificada pelo Congresso Nacional, com a manutenção das reservas, em 1º de fevereiro de 1984. Em 1994, tendo em vista o reconhecimento pela Constituição Federal brasileira de 1988 da igualdade entre homens e mulheres na vida pública e privada, em particular na relação conjugal, o governo brasileiro retirou as reservas, ratificando plenamente toda a Convenção.
[5] Adotada pela Assembléia Geral da Organização dos Estados Americanos em 06 de junho de 1994 - ratificada pelo Brasil em 27.11.1995
CONJUR