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Espetáculo Desnecessário

por ROBERTO TARDELLI - Promotor de Justiça /SP
 

Estou nessa estrada há alguns bons anos; farei, nesse próximo 18 de maio, vinte e nove primaveras, como promotor de justiça. Se me permitirem arredondar, se me permitirem incluir um ano de estudos a essa conta, pronto, terei trinta anos de dedicação integral ao Ministério Público de São Paulo. Naquela época, a gente nem sabia da existência de outros Ministérios Públicos, que foram ganhar existência e densidade com a promulgação de nossa mais gloriosa Constituição, a de 1988, em cujo pórtico, altissonante deixou para a posteridade que:

 

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL….”

 

Nessa cena aberta, gloriosa e épica, coube a nós, brasileiros(as), integrantes do Ministério Público:

 

“Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis.”

 

Dito isso, me resta acrescentar que tudo o que tive e tenho na vida, adquiri (ou perdi) como Promotor de Justiça. Fiz amigos, perdi amigos, vivi dias muito intensos e sei que, se me tornei conhecido, se me tornei de alguma forma conhecido das pessoas e se recebo calorosa acolhida aonde me levam os passos, foi porque sou integrante do Ministério Público. Fosse cozinheiro, fritador de pasteis, motorista, médico, engenheiro, poeta ou jogador de sinuca, não teria como, muito provavelmente, falar com tantas pessoas como falo. Sou grato vinte e quatro horas aos acasos que me trouxeram até aqui.

 

Por isso mesmo, foi com enorme dor e estupefação que acompanhei as midiáticas prisões desse Dia Nacional de Combate à Corrupção. Não que a corrupção não deva ser combatida, obviamente ou que corruptos e corruptores não sejam por isso responsabilizados judicialmente. O que me horrorizou foi que o importante nesse “Dia Nacional de Combate à Corrupção” não era o combate ao crime, mas o espetáculo das prisões de pessoas que sequer foram julgadas e que gozam, como qualquer ser humano vivente em território nacional, da presunção de inocência. Eram presos, com cinegrafistas à porta de suas casas, com repórteres cobrindo o evento, como se fosse um show. E, essa era a pior parte, efetivamente se tratava de um show.

 

Prefeituras foram “interditadas”, pessoas humildes, servidores municipais de salário mínimo e meio foram impedidos de entrar em seu local de trabalho, a tia do café de repente se sentiu parte de uma organização criminosa. Dezenas de computadores foram levados, a presumir que muita gente, mas muita gente, vai ficar sem seu alvará para abrir seu pequeno negócio ou ficou mais distante a aprovação da casa, o habite-se, enfim, a vida comum de pessoas comuns, porque se apreenderam computadores públicos, manipulados por agentes públicos, cuidando de interesses públicos de pessoas comuns, como nós.

 

A ordem jurídica é muito mais que a persecução penal, por grave que seja o delito. Transcende o fato típico e entra no dia a dia das pessoas que pagam seus duríssimos impostos para que sejam menos aborrecidas por nós, burocratas poderosos, que no Dia Nacional de Combate à Corrupção, saímos a prender pessoas e fechar prefeituras, sob o olhar extasiado da mídia, que ganhou assunto para algumas semanas.

 

Defender a ordem jurídica é permitir às pessoas que sigam suas vidas. Por isso, o processo penal tem suas regras do jogo porque a ordem jurídica não significa “ordem a qualquer custo”. Nós – permito-me o plural inclusivista – não guarnecemos nossa função constitucional. Propiciamos apenas um espetáculo histérico.

 

As pessoas que foram presas serão soltas em dias. Alguns poderão não se importar que foram presas, outras, todavia, sairão definitivamente arrasadas, mesmo porque poderão ser absolvidas ao final. Serão massacradas em suas cidades e perderão amigos, amores e vontade de viver. Essa espetacularização de prisões não está na lei e viola gravemente direitos fundamentais, além de não contribuir em absolutamente nada para a elucidação do crime que se pretende investigar.

 

Somos os pedreiros da Democracia. Faz trinta anos que acredito que nossa missão seja essa: amassar o barro da Democracia.

 

Concluiu Brecht, “plantar o chão para a gentileza”… Como sonhavam os que escreveram o maravilhoso preâmbulo que me inspiraram a essas palavrinhas…

 

 

 

Fonte: SINDELPOL - RJ