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Termo circunstanciado deve ser lavrado pelo delegado, e não pela PM ou PRF

As atribuições dos órgãos públicos que atuam na persecução penal são elencadas na Constituição Federal, sendo também confirmadas pela legislação infraconstitucional, não deixando margens para dúvidas sobre qual é o papel de cada agente público na tarefa de prevenir ou reprimir infrações penais. À Polícia Militar e à Polícia Rodoviária Federal cabem a missão de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública, e de patrulhamento ostensivo das rodovias federais, respectivamente (artigo 144, parágrafos 12º e 5º da CF). Já à Polícia Civil e à Polícia Federal incumbem as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais (artigo 144, parágrafos 1º e 4º da CF).

Não por outra razão a Lei 12.830/13, em seu artigo 2º, parágrafo 1º, estabelece que “ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei”. 

Nesse sentido, o termo circunstanciado de ocorrência exsurge como mais uma espécie de procedimento investigatório da polícia judiciária. A Lei dos Juizados Especiais, como não poderia deixar de ser, manteve nas mãos do delegado de polícia a função de conduzir a investigação criminal, ao dispor que a “autoridade policial que tomar conhecimento da ocorrência lavrará termo circunstanciado” (artigo 69 da Lei 9.099/95).

O fato de a apuração de infração de menor potencial ofensivo ser mais simples não desnatura o caráter investigativo do termo circunstanciado de ocorrência, constatação essa feita pela doutrina[1] e pelo próprio legislador:

Quando nós falamos em outros procedimentos previstos em lei, em termos de investigação, nós estamos falando, em primeiro lugar, da chamada verificação preliminar de informações (...) E o outro procedimento é o termo circunstanciado de ocorrência, que se aplica para aqueles casos de delitos de menor potencial, e que está previsto na Lei 9.099/95[2].

Assim, referir-se ao termo circunstanciado de ocorrência por meio de eufemismos como “mero registro de fatos” ou “boletim de ocorrência mais robusto” consiste em discurso enganoso para tentar legitimar usurpação de função pública. Ainda que o TCO não seja complexo, sua lavratura não consiste em simples atividade mecânica, mas jurídica e investigativa, na qual o delegado de polícia decide sobre uma série de questões, tais como tipificação formal e material da infração penal, concurso de crimes, qualificadoras e causas e aumento de pena, nexo de causalidade, tentativa, desistência voluntária, arrependimento eficaz e arrependimento posterior, crime impossível, justificantes e dirimentes, conflito aparente de leis penais, incidência ou não de imunidade, erro de tipo, apreensão dos objetos arrecadados, restituição de objetos apreendidos, requisição de perícia, requisição de documentos e dados cadastrais, representação por medidas assecuratórias, representação por busca e apreensão domiciliar, reprodução simulada dos fatos, entre outras atribuições de polícia judiciária e de apuração de infrações penais comuns. Ademais, caso se constate delito envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, lesão corporal culposa de trânsito em circunstâncias específicas ou concurso de crimes de menor potencial ofensivo em que se supere o patamar do Juizado Especial Criminal, além de todas as análises já mencionadas, a autoridade de polícia judiciária deve deliberar acerca da existência do estado de flagrância, da concessão da liberdade provisória mediante fiança, da presença de requisitos da prisão temporária ou preventiva ou de outras medidas cautelares, do indiciamento, dentre outras medidas restritivas da liberdade do cidadão.

A outorga dessa atribuição exclusivamente ao delegado de polícia não causa espanto, ao se considerar que, no âmbito policial, apenas a autoridade policial pertence à carreira jurídica, como confirmado pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal[3] e pelo legislador no artigo 2º da Lei 12.830/13. Já quanto aos oficiais da Polícia Militar, ainda que tenham formação de grau superior, o STF afirmou que as atribuições desempenhadas pelos milicianos não são “nem sequer assemelhadas às da carreira jurídica”.[4] O Superior Tribunal de Justiça, de igual forma, deixou claro que a atividade do policial castrense “não caracteriza atividade relacionada a carreiras jurídicas”[5]. A mesma conclusão atinge os policiais rodoviários federais, aplicando-se o brocardo ubi idem ratio, ibi idem jus (onde houver a mesma razão, aplica-se o mesmo direito).

Por isso mesmo sustenta a doutrina que todo miliciano, do mais raso soldado ao mais antigo coronel, é considerado um agente da autoridade policial. De igual maneira ocorre com o patrulheiro, do simples agente ao mais anoso inspetor[6]. O legislador não divergiu e utilizou (artigo 301 do CPP) o termo agente da autoridade pra se referir a outros policiais, que, por não serem autoridades, atuam sob o comando ou supervisão do delegado de polícia. Essa constatação não desmerece de forma alguma a importante função desempenhada pelos componentes da polícia administrativa, mas apenas esclarece qual a missão de cada policial na persecução penal.

Sem fechar os olhos a todas essas considerações, o Tribunal Pleno da corte suprema consolidou entendimento no sentido de que à Polícia Militar não incumbe a apuração de infrações penais comuns, não podendo, portanto, elaborar termo circunstanciado de ocorrência ou praticar qualquer outro ato de polícia judiciária:

A atribuição de polícia judiciária compete à Polícia Civil, devendo o termo circunstanciado ser por ela lavrado, sob pena de usurpação de função pela Polícia Militar[7];

O que se mostra grave, aí, são as consequências jurídicas que decorrem, exatamente, da elaboração do termo circunstanciado de ocorrência (ministro Celso de Mello);

Parece-me que ele está atribuindo a função de polícia judiciária aos policiais militares de forma absolutamente vedada pelo artigo 144, parágrafo 4º e 5º da Constituição (ministro Ricardo Lewandowski);

Tem-se, no artigo 144 da Constituição Federal, balizas rígidas e existentes há bastante tempo sobre as atribuições das polícias Civil e Militar. No caso da Polícia Militar, está previsto que cabe a ela a polícia ostensiva e a preservação da ordem, mas não a direção de uma delegacia de polícia (ministro Marco Aurélio);

Creio que as duas polícias, Civil e Militar, têm atribuições, funções muito específicas e próprias, perfeitamente delimitadas e que não podem se confundir (ministra Ellen Gracie)[8].

Segundo o STF, nenhum outro agente público está autorizado a exercer função de autoridade policial:

Este Tribunal reconheceu a inconstitucionalidade da designação de estranhos à carreira para o exercício da função de delegado de polícia, em razão de afronta ao disposto no artigo 144, parágrafo 4º, da Constituição do Brasil. Precedentes[9];

Em frontal violação ao parágrafo 4º do artigo 144 da Constituição, a expressão impugnada faculta a policiais civis e militares o desempenho de atividades que são privativas dos delegados de polícia de carreira. De outra parte, o parágrafo 5º do artigo 144 da Carta da República atribui às polícias militares a tarefa de realizar o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública. O que não se confunde com as funções de polícia judiciária e apuração de infrações penais, estas, sim, de competência das polícias civis[10].

A doutrina majoritária[11] não diverge da corte suprema:

O artigo 144 não configura simples aconselhamento ou opinião, cuja observância esteja adstrita à vontade pessoal dos agentes. (...) A atuação dos órgãos estatais, necessariamente, deve ser pautada pelo princípio da legalidade, seguindo com rigor a definição prévia de atribuições e limites previstos para cada função[12];

A Polícia Militar, cada vez mais, arvora-se numa função que não é sua: lavrar termos circunstanciados e protagonizar investigações (...) Logo, ao se realizar a apreensão de um cidadão, esse deve ser levado à presença da autoridade policial, a qual não se confunde com sargento ou tenente da Polícia Militar (...) Evidentemente, não estamos aqui satanizando a Polícia Militar, apenas indicando seu lugar (...) Cuida-se de colocar cada personagem do sistema penal em seu lugar respectivo[13].

De outro lado, importante mencionar a inconstitucionalidade dos acordos entre a polícia administrativa e o Ministério Público, geralmente formalizados como termo de convênio ou de cooperação, que objetivam autorizar a lavratura de termo circunstanciado de ocorrência pelos policiais ostensivos. O ajuste não se presta a legitimar a usurpação de função, porquanto o ato infralegal não se sobrepõe à Constituição Federal. O ato normativo infraconstitucional deve ser compatível com a Lei Maior, e não o contrário. Configura verdadeiro estelionato jurídico a pretensão de redefinir a repartição constitucional de atribuições por meio de mero acordo bilateral, como se emenda constitucional fosse. Lúcidas as palavras da doutrina oriunda do próprio MP:

Trata-se de evidente inconstitucionalidade, pois as atribuições da Polícia Rodoviária Federal estão taxativamente previstas no artigo 144, II, c/c parágrafo segundo da Constituição Federal.

Concluindo: termo circunstanciado lavrado por um policial rodoviário federal é um procedimento inexistente juridicamente (pois produzido em flagrante inconstitucionalidade), não se prestando para dar justa causa ao Ministério Público, seja para propor a transação penal, seja para oferecer a peça acusatória[14].

Além do mais, a solução de eventuais dúvidas sobre o sentido e alcance do artigo 144 da Carta Maior não passa por órgãos administrativos como o Conselho Nacional do Ministério Público, mas pelo Supremo Tribunal Federal, que já se posicionou contrariamente à usurpação de função.

Com efeito, sempre que um agente público incompetente se imiscui em função alheia, as consequências para a persecução penal são desastrosas. Senão vejamos.

Todos os elementos informativos e probatórios produzidos por instituição diversa da polícia judiciária são inválidos, porquanto o ordenamento jurídico veda a utilização da prova ilícita (artigo 5º, LVI da CF e artigo 157 do CPP), proibição reafirmada pelos tribunais superiores[15] e pela doutrina[16]. Nesse prisma, a afronta a garantias fundamentais a pretexto de combater o crime produz uma sucessão de atos nulos que, antes de fazer Justiça, promove a impunidade.

Além disso, a partir do momento em que um agente público exerce atribuição para a qual não está legalmente autorizado, deixa de cumprir suas funções precípuas com eficiência, malferindo esse postulado constitucional exigido da administração pública como um todo (artigo 37 da CF) e dos organismos de segurança pública em especial (artigo 144, parágrafo 7º da CF). Cada PM ou PRF que realiza indevidamente a função investigativa e cartorária representa menos um policial fardado nas vias públicas para inibir a prática de delitos. E não é preciso ser nenhum especialista para constatar que não sobram, mas, ao contrário, faltam policiais nas ruas, tornando alarmantes os índices de criminalidade.

De mais a mais, quando o Brasil leva adiante investigações arbitrárias, afrontando as normas plasmadas no Pacto de São José da Costa Rica, fica sujeito a nova condenação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, tal como ocorreu no Caso Escher[17], justamente porque um policial fardado usurpou as atribuições da polícia judiciária, o que gerou uma indenização de U$ 30 mil, a ser arcada pelo cidadão brasileiro.

Diga-se ainda que o policial que atuar à margem da Constituição poderá sofrer responsabilização pessoal, seja por improbidade administrativa (artigo 11 da Lei 8.429/92), seja disciplinar por seu próprio órgão, seja criminal por usurpação de função pública (artigo 328 do CP), como bem lembra a doutrina[18] e inclusive o Supremo Tribunal Federal[19].

Igualmente, as competências e atribuições que resultam diretamente do texto constitucional não podem ser ampliadas por interpretação extensiva da Constituição, que almeje encontrar funções implícitas num rol taxativo de funções[20].

Não é aceitável, ainda que a pretexto de combater a criminalidade, que a polícia ostensiva, com a chancela de quem quer que seja, viole as normas constitucionais, amparando-se no falacioso argumento da defesa do interesse público. Não convence o “salto triplo carpado hermenêutico”[21] daqueles que objetivam alargar o conceito de “autoridade policial” para ampliar atribuições à revelia da Lei Fundamental.

Amparar tais medidas sob a escusa das máculas estruturais das polícias judiciárias corresponde à adoção do famoso jeitinho brasileiro no âmbito jurídico, em prejuízo da franquia de liberdades constitucionais. Aliás, se todo órgão público com deficiência estrutural tiver suas atribuições surrupiadas, então o que teremos será uma grande baderna jurídica, em prejuízo da população.

O fundamento da legitimidade da persecução conduzida pelo Estado-Investigação reside na obediência às garantias constitucionais dos suspeitos, dentre os quais se inclui a repartição constitucional de atribuições. Os direitos fundamentais não consistem em favores do Estado.

Nessa vereda, a polícia ostensiva não tem legitimidade para se tornar órgão persecutório do Estado, por melhor que sejam as intenções. O direito à segurança pública da sociedade não pode ser uma senha para toda sorte de abusos e arbitrariedades. A fase pré-processual é o momento no qual a aplicação das normas constitucionais se mostra mais sensível[22], e também por isso a investigação deve se curvar à Constituição, e não vice-versa.

Não é demais sublinhar que a exigência do respeito à divisão constitucional de atribuições em nada macula a importância dos órgãos de polícia administrativa. Todas as atribuições constitucionais, como a de polícia ostensiva e patrulhamento das rodovias federais, possuem seu valor.

O discurso de combate à criminalidade não tem o condão de mitigar a carta constitucional de direitos fundamentais. A sanha utilitarista não pode servir de justificativa para que policiais fardados passem a lavrar termo circunstanciado no capô da viatura ou a conduzir civis para destacamentos militares, num retrocesso que jogaria por terra garantias que não foram conquistadas do dia para a noite.

A garantia de ser investigado apenas pelo delegado natural revela-se verdadeiro direito fundamental do cidadão. Nunca se pode esquecer que, na persecução penal, forma significa garantia[23]. A observância do rito representa verdadeira condição necessária da confiança dos cidadãos na Justiça[24].

 

Henrique Hoffmann Monteiro de Castro é delegado de Polícia Civil do Paraná, especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF e em Segurança Pública pela Uniesp. Também é professor convidado da Escola Nacional de Polícia Judiciária, da Escola Superior de Polícia Civil do Paraná, da Escola da Magistratura do Paraná e da Escola do Ministério Público do Paraná, e professor-coordenador do Curso CEI e da pós-graduação em Ciências Criminais da Facnopar.